Na noite de 4 de dezembro de 1980, Francisco Sá Carneiro surgiu no local errado à hora errada.
Os operacionais que prepararam o atentado, quando souberam que Sá Carneiro ia embarcar no Cessna, momentos antes por eles armadilhado, ainda equacionaram a possibilidade de o desarmadilhar, mas...o risco de serem apanhados era elevado.
Ironia das ironias (se é que se pode falar em ironia quando está em causa a perda de vidas humanas) os operacionais que levaram a cabo aquele covarde atentado, eram, nem mais, nem menos, mercenários (que gostavam de ser conhecidos por 'guarda-costas') que estavam ao serviço de altos dirigentes da Direita e Extrema-Direita, nomeadamente do CDS, partido do qual Adelino Amaro da Costa era dirigente.
Foi precisamente esta ligação que facilitou o acesso à pequena aeronave.
Foi a necessidade de encobrir esta triste realidade que levou a que 43 anos depois não tenha sido possível, julgar e condenar os culpados.
Deixo-vos aqui alguma informação para ajudar a compreender aquilo que aconteceu há 43 anos, na noite de 4 de dezembro de 1980:
PARTE 1
Foi um momento inesquecível, aquele que vivi na noite de 4 de dezembro de 1980.
Tinha combinado com os meus sócios José e David, fazermos um serão depois do jantar para selecionarmos os modelos para a coleção Primavera/Verão 1981 da nossa fabriqueta de confeções, de nome Sandalber.
Antes de partir para este compromisso profissional, desloquei-me a um Café que frequentava, para aí fazer a habitual, daquela vez rápida, partida de bilhar com o meu amigo João Neves.
Tacada para cá, tacada para lá, de repente o Café fica em silêncio a ouvir Raul Durão da RTP1 a comunicar ao país que o primeiro-ministro de Portugal, ministro da Defesa e outros acompanhantes, tinham falecido num acidente de aviação em Camarate, ali a 3/4 km do local onde nos encontrávamos.
Eu e o meu amigo Neves, largámos imediatamente os tacos, e passados 10 minutos estávamos no Bairro das Fontainhas, junto ao Bairro de Angola, em Camarate (zona oeste/norte do aeroporto de Lisboa).
A polícia tentava fazer o habitual isolamento da área, mas a multidão começava a engrossar.
De repente alguém me tocou no ombro, como que a convidar-me para o acompanhar.
Era o meu amigo Severiano Falcão (falecido em 2004), na altura presidente da Câmara Municipal de Loures.
Alguns metros à frente, eis-me diante daquilo que restava de alguns seres humanos.
Se fosse hoje, acho que não me atrevia a ser tão curioso.
A imagem que me acompanha há 43 anos, é demasiado pesada.
Mesmo sendo de gente pela qual não nutria qualquer simpatia política.
Mas eram pessoas...
PARTE 2:
Nos anos seguintes, quis o destino que eu frequentasse casas noturnas em Lisboa, que eram também frequentadas por gente ligada, ou que tinha estado ligada, à rede bombista do MDLP (movimento liderado pelo General António de Spínola), que entre outros atentados, tinham participado na morte do Padre Max e da estudante Maria de Lurdes, militantes da UDP (uma das forças políticas fundadoras do atual Bloco de Esquerda).
Dois desses “amigos da boémia” foram precisamente o J.E. e o S.L.R..
Certa noite, provavelmente já de madrugada, todos já “bem bebidos”, ouvi uma surpreendente revelação: “Catujaleno, fui eu que fiz a bomba, mas foi este cabrão (apontando para S.L.R.) que meteu a bomba no avião!”.
Confesso que não atribuí grande credibilidade àquela confissão, mas… aquilo ficou-me bem registado na memória.
PARTE 3:
Em maio de 1992, fiz uma de várias viagens ao Rio de Janeiro.
Antes de fazer esta viagem, entra-me no escritório o meu amigo e cliente Jorge Santos, conhecido por Jorge da Quinta (Camarate), e pergunta-me se eu podia levar uma garrafa de aguardente para um seu familiar que estava no Brasil há alguns anos.
Quando lhe pergunto onde estava o seu amigo e familiar Armindo, diz-me que estava estabelecido na Praia Grande, Santos, São Paulo.
Ainda lhe disse que a Praia Grande ficava a mais de 400 km do Rio, mas… acabei por lhe dizer: “Traz a garrafa!”.
Estava no Rio, quando um belo dia, pedi um carro emprestado a um amigo que era dono do Galeto, que eu frequentava, por sinal também Jorge (mas de Braga), e lá fui percorrer o litoral entre o Rio de Janeiro e a Praia Grande.
Na Praia Grande fui recebido com um caloroso abraço do senhor Armindo e com um soberbo almoço.
No fim do almoço, o agora já meu amigo Armindo surpreende-me com uma pergunta: “Alberto, você quer conhecer o cara que matou o Sá Carneiro?”
Passada uma hora entrámos no Estabelecimento Prisional da Praia Grande, onde o meu mais recente amigo era responsável pela alimentação dos reclusos.
De seguida o meu amigo Armindo aponta para um recluso e diz: “Alberto, é este o cara que falei para você!”
Fez-se silêncio e de seguida quase em simultâneo eu e o S.L.R. dizemos: “A gente já se conhece de Lisboa”.
Conversamos cerca de 30 minutos e S.L.R., agora sóbrio, reafirmou aquilo que J.E. havia dito numa noite de copofonia de Lisboa.
PARTE 4:
Em 2013, em dia que não sei precisar (tenho documentos, mas não os encontrei), sou chamado a depor na X CPI e, sob juramento, mas sem querer vestir a pele de delator, até porque não tinha pessoalmente nada contra o S.L.R., lá acabei por relatar o que escrevi na PARTE 3.
Deixo-vos aqui duas notícias (Expresso e Público) que ajudam a perceber a tramoia que envolveu o Atentado de Camarate:
«O relatório final da X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia de Camarate reafirma a tese de atentado e aponta "lacunas" à atuação da Polícia Judiciária e da Procuradoria-Geral da República.
O documento, previsto ser votado esta terça-feira na especialidade e na sexta-feira em sessão plenária, poderá ainda incorporar algumas sugestões de alteração, já expressas pelos grupos parlamentares de CDS-PP, PCP e também pelos representantes dos familiares das vítimas.
"A queda do avião em Camarate, na noite de 4 de dezembro, deveu-se a um atentado", lê-se nas conclusões finais do texto, cujo deputado relator foi o social-democrata Pedro do Ó Ramos.
O inquérito voltou a debruçar-se sobre a noite dos acontecimentos no final de 1980, em plena campanha presidencial, na qual a Aliança Democrática (PPD/PSD, CDS e PPM) apoiava Soares Carneiro, derrotado posteriormente por Ramalho Eanes.
Há 35 anos, o então primeiro-ministro e o seu ministro da Defesa, respetivamente Sá Carneiro (PPD) e Amaro da Costa (CDS), morreram, tal como a tripulação e restante comitiva, a bordo de um Cessna 421 A, despenhado pouco depois de levantar voo de Lisboa, rumo ao Porto, para um comício.
O relatório realça também que "foi evidenciado, com elevado grau de confiança, que José Moreira e Elisabete Silva foram assassinados no início de janeiro de 1983".
O dono do avião utilizado na campanha presidencial de 1980, José Moreira, e sua companheira foram encontrados mortos no seu apartamento, em Carnaxide, a 5 de janeiro de 1983, dias antes de aquele engenheiro ir testemunhar, também em comissão parlamentar de inquérito, sobre a queda do bimotor norte-americano, depois de ter afirmado possuir informações relevantes sobre o assunto.
"A atuação da PJ na investigação à morte de José Moreira e Elisabete Silva foi deficiente e apresentou lacunas inequívocas, sendo difícil crer que se tenha devido apenas a eventuais descuidos", refere o documento.
Ainda segundo o texto, "a atuação da PGR, designadamente no inquérito disciplinar de 1992 à atuação da PJ e do Instituto de Medicina Legal, no caso da morte de José Moreira e Elisabete Silva, foi também ela deficitária, com gritantes e evidentes lacunas, sendo igualmente difícil crer que se tenha devido apenas a eventuais descuidos".
Porém, a comissão de inquérito conclui que "não foi possível estabelecer um nexo de causalidade entre a sua morte (José Moreira) e o atentado que vitimou, entre outros, o primeiro-ministro e o ministro da Defesa".
Relativamente ao Fundo de Defesa Militar do Ultramar, cujas supostas irregularidades estariam a ser investigadas na altura por Amaro da Costa, o documento reconhece que o mesmo "permaneceu ativo, sob a forma de um fundo privativo até 1993, tendo sido utilizados cerca de 481 milhões de escudos neste período sem qualquer escrutínio".
"O saldo inicial do fundo privativo em 1981, e calculado aos dias de hoje, equivaleria a cerca de 30 milhões de euros.
O saldo final em 1993 corresponderia a cerca de 25 mil euros", lê-se.
O relatório confirma ainda "o transbordo de armas para o Irão em 1980 e a exportação de armas para o mesmo país, pelo menos em 1980 e 1981, mesmo após o corte de relações comerciais e com a inexistência de autorização de exportação de armamento por parte do Ministro da Defesa".
A comissão parlamentar de inquérito recomenda ainda à Assembleia da República "a digitalização de todo o espólio documental relativo ao atentado e posterior colocação de todo o acervo no site oficial do Parlamento".»
(in ‘Expresso online’, 23 de junho de 2015)
«Lee Rodrigues extraditado para França
Sinan Lee Rodrigues, nascido em Moçambique, mas de origem paquistanesa, é identificado no processo do caso Camarate com 27 identidades diferentes.
No Brasil, Lee Rodrigues cumpriu quase dez anos de prisão em diversos estabelecimentos prisionais brasileiros por tráfico de cocaína.
Nos termos da acusação particular feita pelas famílias no inquérito de Camarate os factos imputados a Lee Rodrigues, José Esteves, Canto e Castro e à sua mulher, Joanita di Valleriano, são os seguintes: Canto e Castro é acusado de ter encomendado materiais explosivos em Londres, a mulher de os ter entregue a José Esteves, que terá fabricado a bomba, e é Lee Rodrigues apontado como o executor do atentado, através da colocação do engenho no Cessna, que se despenhou na noite de 4 de Dezembro de 1980 em Camarate.
Ricardo Sá Fernandes, advogado das famílias das vítimas, disse várias vezes que Sinan Lee Rodrigues se vangloriava no Brasil, perante amigos, de ter sido o autor da colocação do explosivo no Cessna cuja queda vitimou Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, António Patrício Gouveia e respetivas esposas e os pilotos.
Lee Rodrigues chegou a ser ouvido pela Polícia Judiciária e numa comissão parlamentar de inquérito, mas negou sempre a sua alegada participação na morte de Sá Carneiro.»
(in jornal ‘Público’ de 8 de janeiro de 2001)
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