«Nasci em Bissau em 1971, filha de um militar de operações especiais, sei o que ouvi e conheço os relatos na primeira pessoa dos que passaram por lá. Ninguém me contou. Voltei várias vezes à Guiné depois da independência.
Ninguém me contou também o abandono dos comandos africanos que serviram o exército português na Guiné, assassinados pelo PAIGC, nem o abandono a que durante muitos anos estiveram votados os combatentes portugueses.
Marcelino Mata foi o “herói” útil: negro, fascista, ao serviço de um Império racista que o condecorou como o “negro útil” - as condecorações dele são do Estado Novo - que servia os seus propósitos, como Eusébio serviu para negar o racismo português. Valente? Sem dúvida. Salvou portugueses ? Sem dúvida. Chacinou mulheres e crianças. Sei-o de quem combateu ao lado dele.
“Vasco Lourenço, militar da revolução dos cravos que preside à Associação 25 de abril e cumpriu serviço militar, concorda que Marcelino "foi um grande combatente, corajoso, extraordinariamente destemido".
No entanto, frisa "cometeu crimes de guerra. Era claramente um "Rambo" e torná-lo um herói é ofender todos os antigos combatentes que combateram dentro das regras".
Tem a sua memória no tempo em que cumpriu serviço militar na Guiné (julho de 1969 a junho de 1971) um relato que ouviu Marcelino fazer a um major, sobre uma operação: "entrámos na tabanca, deitamos granadas incendiárias para as palhotas, as pessoas fugiam para o centro da tabanca, matámos todos, homens, mulheres, crianças". "Não aguentei e saí do gabinete", afirma. "Foram ações deste tipo que lhe proporcionaram as condecorações. Não me venham com a teoria de que a guerra tudo se justifica É este o exemplo que queremos dar de um militar?", questiona.”
São estes os nossos “heróis”? Ou romantiza-se aqui um combatente porque serve a narrativa do “não racismo” e dos bravos comandos ? Homenageia-se de forma acrítica um feroz defensor do Império e do salazarismo ? Com presença do Presidente da República de um país democrático?
Desde que ouvi, ninguém me contou, ouvi, um militar narrar como atirou ao “chão de terra vermelha, uma preta ” e a violou ali mesmo, “elas andavam por ali nuas”, e depois a matou, “nem senti nada”, desconfio dos heróis e sei que há muita história da guerra por contar. A preta teria nove ou dez anos. Uma criança.
O pior da guerra ? São os heróis.
(os militares “nossos” e os do PAIGC “deles”).
A memória do meu pai que deixou a juventude nos pântanos da Guiné, que perdeu os camaradas numa emboscada, que ficou com queimaduras em todo o corpo e cicatrizes para sempre na alma, obriga-me a escrever este texto que evitei fazê-lo.
Leiam este trabalho excelente da Valentina Marcelino que nos dá a dupla de dimensão de uma figura controversa, aceite de forma acrítica.»
Helena Ferro de Gouveia
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