Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

domingo, 27 de outubro de 2024

As Varinas de Lisboa



 

Lembra-se da figura e dos pregões das varinas de Lisboa?

Talvez as conheça apenas através das inúmeras alusões e representações que as evocam. Vamos falar-lhe das suas origens, características, o que as tornou tão populares e outras curiosidades que vai gostar de relembrar ou descobrir.
No final do séc. XVIII o assoreamento da laguna que constitui a Ria de Aveiro na região centro do país, mudou por completo a paisagem e a vida dos seus habitantes. Este fenómeno natural provocou a estagnação das águas, transformando uma fonte de subsistência e vida num pântano insalubre. Sucessivas epidemias reduziram a população para metade e os que restaram foram obrigados a encontrar novas formas de vida.
Apesar de uma intervenção de engenharia que resolveu a questão do assoreamento no início do séc. XIX, a violência do mar daquelas regiões obrigou a que os pescadores procurassem outros locais para encontrar sustento. A solução passou pela migração para a região de Lisboa, primeiro sazonal dos homens e mais tarde definitiva com as suas mulheres e familiares mais próximos.
A década de 70 do séc. XIX traz consigo o caminho-de-ferro e este mais população para a capital em expansão. É desta forma que as gentes oriundas da zona da Ria de Aveiro como Ovar, Esgueira, Murtosa, Ílhavo, se deslocam para Lisboa trazendo consigo a sua particular forma de estar, os seus costumes, os seus trajes singulares.
Sabemos que estes homens e famílias se fixaram em bairros populares ribeirinhos como a Madragoa, Santos ou Alfama onde encontravam habitação precária e barata onde viviam pobremente dormindo em esteiras no chão.
Constituíam uma comunidade fechada que casava entre si mantendo assim arreigadas as suas tradições. Contavam com o apoio dos seus conterrâneos que haviam chegado primeiro e com as mulheres mais velhas que ficavam com as crianças mais pequenas. Na ausência desta ajuda os bebés acompanhavam as suas mães até à Ribeira e eram transportadas nas próprias canastras. Por volta dos dez anos as crianças começavam a trabalhar, muitas vezes já sozinhas.
Independentemente do seu local de origem estes homens e mulheres são apelidados de ovarinos, provenientes de Ovar. Com o tempo o nome abreviou-se, o “O” caiu, ficando então conhecidos como varinos e varinas.
Varino era também um modelo de barco oriundo da Ria que navegou pelo Tejo a par dos botes, das fragatas e de tantas outras embarcações tradicionais.
Varinos designavam ainda uma espécie de capotes sem mangas que os homens usavam, um modelo que os protegia do frio sem toldar os seus movimentos.
Os trajes típicos das varinas eram constituídos por blusas de cores vivas, saias com barras ou de xadrez, avental, de onde pendia uma bolsa de feltro (patrona) destinada a guardar o dinheiro e uma faixa de malha na anca que permitia levantar a saia quando necessário, lenço florido e chapéu de feltro preto no qual apoiavam a sogra, uma rodilha de panos onde assentava a canastra. Estes, associados ao comportamento descontraído que ocupava sem pedir licença o espaço da rua, criava um certo exotismo que os lisboetas aprenderam a tolerar e que os turistas apreciavam.
Lisboa era o grande centro de venda de peixe, capturado nas zonas mais a norte como Peniche e a Ericeira e mais a sul como Sesimbra e Setúbal. Os homens provenientes da região da Ria, não terão dado muito nas vistas, eram apenas mais trabalhadores braçais que engrossavam a população da cidade, mas com a chegada das suas mulheres o cenário mudou. Era impossível ficar indiferente à passagem dos pregões que anunciavam pescada ou sardinha “viva da costa!”, do linguajar menos próprio de senhoras, das roupas garridas, das saias que revelavam as pernas e os pés descalços.
A Lisboa elegante e burguesa reagiu com espanto e algum desdém a estas mulheres que calcorreavam as ruas dos bairros apregoando sardinhas, carapaus, fanecas, pescada e o que mais houvesse trazido de madrugada nos barcos que aportavam à Ribeira pelos seus homens, do mar então generoso. Era ainda noite quando as varinas ali acorriam, pés descalços na água gelada do rio, tomando depois conta das ruas carregando as pesadas canastras forradas com oleados.
Mas as varinas não vendiam só peixe, também corriam todo o dia de um lado para o outro sobre uma delgada prancha descarregando todo o tipo de produtos dos barcos para o cais. Sal, carvão, produtos hortícolas, cereais… um trabalho muito duro que cumpriam com elegância e altivez, postura exigida pelos grandes pesos que transportavam à cabeça.
O facto de andarem descalças incomodava a imagem que o governo autoritário do pós-golpe do 28 de Maio de 1926 pretendia dar para o exterior. Assim, em 1928 e em nome da civilidade foi proibido andar descalço na cidade, o que constituiu um problema para as varinas de Lisboa. Para além de serem um gasto extra, as chinelas atrasavam o andamento e passaram a ser mais um dos motivos de conflito com os agentes da autoridade. Irreverentes, as mulheres contornavam o problema partilhando as chinelas. Ao avistarem um polícia sentavam-se deixando o pé descalço encoberto pelas saias exibindo no outro a obrigatória chinela.
Estas mulheres guerreiras contornavam o destino como e sempre que podiam criando invariavelmente conflitos, zaragatas, discussões e gritaria com os populares, com a polícia e até entre si. Contudo, rapidamente seguiam em frente, continuando o trabalho, pois a fome apertava e não havia tempo a perder.
As varinas não podiam parar ou instalar uma banca fixa na rua, isso constituía concorrência aos lojistas que logo se queixavam apelando às autoridades a defesa dos seus direitos. Eram acusadas de atrapalhar o fluxo de pessoas e trânsito e responsáveis pelos restos das vísceras e escamas do amanhar do peixe e do mau cheiro que estas provocavam nas artérias da cidade. Assim, estavam condenadas a percorrer as ruas apregoando e chamando as freguesas.
Com o avançar dos tempos tudo mudou. No último trimestre de 1980 teve lugar a última descarga de peixe na Ribeira. As varinas estavam condenadas a desaparecer mas continuam presentes em diversas representações: esculturas, murais, telas e azulejos, nas canções que trauteamos nas festas dos santos populares, nas letras do fado, no imaginário da cidade e da sua população.

By getLISBON

(📷 Amadeu Ferrari, Arquivo Municipal de Lisboa)

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"Horta do Zorate" é o blogue pessoal de Alberto João (Catujaleno), cidadão do mundo em autoconstrução desde 1958.