Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

O MARAVILHOSO PODER DAS PALAVRAS



 

"Letícia foi minha aluna numa escola em Trás-os-Montes, em plena Serra.
Tinha 11 anos conhecendo as carências e sujidade da vida.
Sempre com a mesma roupa, herdada por uma tradicional necessidade familiar.
Onze anos lutando com os bichos dia e noite.
Com um nariz que como vela escorria o tempo todo.
Com cabelo comprido e desbotado servindo de escorrega para os piolhos.
Mesmo assim, era uma das primeiras a chegar à escola.
Na hora do trabalho em equipa ninguém queria trabalhar com ela.
Os colegas não lhe deram a oportunidade de demonstrar o quão inteligente ela era: repúdio foi o que Letícia conheceu.
De vez em quando contava histórias aos meus alunos e me perguntava: de que adianta ler histórias para estas crianças algumas delas nem comeram?
Serviria de alguma coisa alimentá-los com fantasias?
Eu acreditava que sim, mas não sabia até onde.
Constantemente contava-lhes histórias, especialmente na hora mágica das leituras, duas vezes por semana.
Um dia contei "A Cinderela" e quando cheguei à parte em que a fada madrinha transformou a jovem andrajosa em uma linda moça de vestido vaporoso e chinelos de cristal, Letícia aplaudiu freneticamente o milagre realizado.
Noutra ocasião, perguntei aos meus alunos o que eles queriam ser quando crescerem?
E o baú dos seus desejos se abriu para mim: alguém queria ser astronauta, embora nem a carreira chegasse à aldeia; outros queriam ser mestres, artistas ou soldados.
Quando foi a vez da Letícia, levantou-se e com voz firme disse: "Eu quero ser médica! " e uma gargalhada insolente foi ouvida na sala de aula.
Letícia com lágrimas nos olhos encolheu-se toda no banco invocando a fada madrinha da Cinderela que não chegou.
O meu trabalho nessa escola terminou junto com o ano letivo.
A vida seguiu o seu curso.
Depois de 15 anos, voltei por esses lugares para reviver memórias... encontrei algumas respostas e outras perguntas.
Algumas Boas notícias... uma delas que a carreira já passava na aldeia.
Antes de chegar ao cruzeiro onde transbordam os passageiros que vão para a outra povoação, uma jovem abeirou-se de mim vestida de branco.
- Você é o mestre Victor Manuel!... Você foi meu professor! - Ela disse-me - surpreendida e sorridente.
Aquele que podia encantar cobras com as histórias que contava.
Lisonjeado, respondi:
- Esse sou eu.
- Não se lembra de mim, mestre? - perguntou, e continuou dizendo com a mesma voz firme de outro tempo - eu sou Letícia... E eu sou médica...
Atropelei as minhas memórias para reconstruir a imagem daquela garotinha que em outro tempo ninguém queria ter por perto.
Desceu no cruzeiro deixando, como a Cinderela, a pegada de seus ténis no estribo da carreira...
E eu com mil perguntas.
Ainda me disse:
- Trabalho em Bragança... Encontre-me na clínica tal... e foi embora...
Um dia fui à clínica que ela me disse e não a encontrei.
Nem a enfermeira nem o porteiro a conheciam.
"As histórias são lindas, mas não deixam de ser histórias", eu lamentei que não fosse verdade.
Arrependido de ter ido, e quase derrotado, encontrei a diretora da clínica e falei com ela.
O que ela me disse encheu-me de felicidade, reviveu a minha fé nas pessoas e na literatura:
- A Dra. Letícia trabalhava aqui - ela contou-me.
Ela é muito humana e tem muito amor pelos pacientes, principalmente pelos mais necessitados.
- Essa é a pessoa que eu procuro - quase gritei.
- Mas já não está entre nós - disse a diretora.
- Morreu? - Perguntei ansioso.
- Não! - Disse sorrindo.
A Dra. Letícia candidatou-se a uma bolsa de estudo e ganhou-a... agora está em Itália.
Letícia continua a aprender mais e a ensinar os seus segredos para lutar e perseguir os sonhos.
Eu ainda quero saber até onde vai o poder das palavras; qual é o segredo para encantar as cobras?
Como professor, o que posso fazer para equilibrar a balança da justiça social em casos semelhantes?
Quando começou a descolagem dos sonhos de Letícia?
E quanto ao resto dos seus companheiros?
Onde está a força das mulheres que superam qualquer expectativa?
Não quero mais ser o professor da Letícia: agora quero aprender.
Quero que ela me ensine como uma lagarta evolui para se tornar um anjo e, acima de tudo, quero descobrir qual foi a varinha mágica que a transformou na Princesa do Conto de Fadas."
📚"Letícia, piolhos e contos de fadas".
Nota do Catujaleno, editor deste blogue:
Confesso que a meio deste texto a emoção tomou conta de mim e, por momentos, tive que parar a leitura para me recompor.
Letícia, obrigado pela fantástica Lição de Vida que deste à Humanidade! ❤


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"Horta do Zorate" é o blogue pessoal de Alberto João (Catujaleno), cidadão do mundo em autoconstrução desde 1958.