Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

quarta-feira, 25 de março de 2009

Álvaro Cunhal: Testemunha conta última prisão...

"Há precisamente 60 anos, uma brigada da PIDE tomou de assalto uma casa clandestina do PCP. Álvaro Cunhal, Militão Ribeiro e Sofia Ferreira foram presos no Casal de Santo António, no Luso. Esta foi a terceira e última prisão do líder comunista.
(Álvaro Cunhal)
A porta salta do ferrolho corrida a pontapé e o rés-do-chão é invadido por homens armados. Ouvem-se gritos ameaçadores, o rebuliço de alguns móveis atravessados por encontrões e o avançar pretoriano dos agentes escadas acima. É madrugada. A brigada da PIDE e os guardas da GNR surpreendem um homem de pijama a sair do quarto, um segundo ainda deitado, que terão daqui a pouco de ajudar a levantar-se devido à doença que o deixara prostrado, e uma jovem coberta com um robe.

O chefe da brigada da PIDE é Jaime Gomes da Silva. Manda encostar uma arma à cabeça de Álvaro Cunhal e ordena em tom teatral: "Se esse se mexer, dá-lhe um tiro e mata-o". É toda esta panóplia guerreira que deita abaixo a mais importante casa clandestina do PCP: a vivenda do Casal de Santo António, no Luso.

"O Álvaro Cunhal e o Militão Ribeiro foram de imediato encostados a uma parede e com armas apontadas. Algemaram-nos depois um ao outro ainda de pijama e só depois de a casa ser revistada é que foram levados", conta Sofia Ferreira, única testemunha viva.

São os três manietados, amarfanhados nos carros da polícia política e conduzidos para as instalações da PIDE no Porto, na Rua do Heroísmo. Esta é a terceira e última prisão do líder comunista: faz hoje 60 anos. Após a posterior fuga de Peniche, em 1960, Cunhal só regressará a Portugal no fogo purificador do 25 de Abril. A PIDE nunca mais conseguirá voltar a catrafilar o homem que Salazar quis encomendar a Deus como encarnação de todo o Mal.

Vale a pena recordar que este dia 25 de Março de 1949 correu sem sobressaltos. Desde Novembro que Cunhal e Sofia vivem juntos. Militão chegará apenas em Fevereiro. Salazar é o alter-ego de um Portugal obscurantista e infértil. O provincianismo sente-se nas linhas de Pessoa que lamentam a obediência mimética, subordinada, inconsciente, mas feliz.

Álvaro Cunhal, 36 anos, passa os dias a escrever documentos políticos e a acompanhar as tarefas relatadas por cada sector do partido. Sofia Ferreira, 23 anos, mergulhara na clandestinidade em 1946 e dizer isto significa dizer que cortou as relações com toda a família. A morte do pai chegou-lhe através do jornal.

Chegou ao Luso para desempenhar uma tarefa de segurança: ser companheira de "Duarte". "Elvira" é esta jovem mulher que certifica a vida conjugal para iludir as alcovitices domésticas das vinhanças. "Dissemos que o Álvaro estava a tirar um curso, mas, por razões de saúde, o médico tinha-o aconselhado a retirar-se para um meio sossegado. Fazíamos uma aparência de vida de casal". Diga-se acidentalmente que as aparências são vitais para salvar os clandestinos e o próprio PCP.

Cunhal dirige todo o partido durante quatro meses a partir desta vivenda, mas deixa-se agarrar por um inimigo exultante e vingativo. A porta salta do ferrolho corrida a pontapé e o rés-do-chão é invadido por homens armados. O que se passou aqui?

A máquina repressiva mudara com o final da II Guerra Mundial, mudara com os comícios de Norton de Matos e mudara com a sua desistência à boca das urnas. O Estado Novo deixa-se coalhar num ambiente espapaçado e deita a mão a vários oposicionistas.
(Sofia Ferreira)

É preciso preservar a recatada alvura do regime. A PIDE é injectada com novos poderes e as "medidas de segurança" podem ser invocadas por tempo indeterminado se estiver em causa o plano amorfo de neutralidade social.

O casal "Duarte" e "Elvira" parece falsamente integrado na quietude do Luso. "O Álvaro tinha muito trabalho de escrita e de estudo e eu ajudava a escrever à máquina e a arrumar os arquivos", recorda Sofia Ferreira. A companheira trata também da lida doméstica e das compras, "mas o camarada fazia questão de ajudar: arrumava sempre o seu quarto e até cozinhava".

A PIDE exulta com a sua guerra predatória e utiliza todo o aparelho do Estado. Os autarcas informam sobre novos habitantes que aparecem nas suas terras e se enquadram nos perfis traçados para identificar os funcionários do PCP. As cidades são minadas por redes de informadores anónimos. Os preceptores do Estado Novo esquecem-se de si próprios. Ou seria o contrário?

Os comunistas mantêm o único partido organizado na clandestinidade: direcção política, rede de funcionários, aparelho de militantes distribuídos pelo país, gráficas clandestinas que imprimem imprensa oficial. Mas a vaga de prisões apanhará inevitavelmente os principais dirigentes.

A queda começa pouco tempo depois da chegada de Militão Ribeiro ao Luso. Duas vezes deportado para o Tarrafal, vivia clandestino perto de Aveiro, quando a casa foi tomada pela PIDE em Fevereiro, três dias antes das eleições presidenciais. Foge para o Luso e abriga-se com Cunhal. A companheira é lançada para os calabouços. É nesta altura que a casa de José Gregório também cai, mas consegue fugir à PIDE. Sucedem-se as prisões e o início do que parece ser um eficaz processo de desmantelamento do PCP.

Salazar deixara-se embriagar pela falsa regeneração dos costumes, temendo verter mais lágrimas de raiva na sua austeridade monástica. O ofício terá sucesso e a PIDE consegue trespassar o PCP. Condena Cunhal a uma longa prisão, Militão morrerá na cela em 1950 com graves problemas mentais e físicos e Sofia Ferreira será duramente espancada e terá sequelas para o resto da vida.

A denúncia da presença dos comunistas no Luso terá partido do presidente da Câmara da Mealhada, membro da União Nacional, estimulado pelo seu congénere de Águeda, José Feio, responsável pela delação que levara à queda da casa de Militão Ribeiro.

A decapitação do PCP parece congeminar o inevitável aniquilamento do partido com a detenção de vários membros do secretariado. Junta-se a prisão de Jaime Serra uns dias mais tarde, em Lisboa, pela brigada de José Gonçalves.

A continuidade da actividade do PCP será garantida por Júlio Fogaça até 1960. O que levantará outros problemas: Cunhal discorda da nova estratégia e a sua primeira medida política após a fuga será corrigir esse desvio e corrigir com particular dureza. Quando findar a expiação em Peniche, renascerá um novo PCP.

in JN online, 25-3-2009


(Militão Ribeiro)
"Antes de fechar os olhos para sempre, Militão Ribeiro ainda consegue fazer sair da cadeia – clandestinamente, é claro – uma carta para os seus camaradas de partido, escrita com o próprio sangue. Extractos dessa carta dizem o seguinte:

«… Tenho sofrido o que um ser humano pode sofrer. Nem sei como tenho tido forças para tanto. Mas com todo este sofrimento nunca deixei de ter fé na nossa causa. Sei que venceremos. Desde sempre mantive a disposição de dar a vida pelo Partido em todas as circunstâncias, assim como a dou de forma horrível e cheia de sofrimento. Mesmo quase já um cadáver ainda fui esbofeteado por um agente. Dores, insónias, fome, agonias, tudo tenho sofrido nestes sete meses, quase sempre de cama, sem me poder mexer…»«… Que infelicidade a minha de só aos cinquenta anos ter começado a trabalhar dessa forma. Felizes os que vêm novos para o Partido e o encontram a trabalhar assim…»

A PIDE assassinou-o cruelmente, um crime lento, dos que não deixam vestígios. Militão morreu de inanição em 2 de Fevereiro de 1950."
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in: http://briteiros.blogspot.com/

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