Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

sábado, 2 de março de 2024

MEMÓRIAS - NATÁLIA CORREIA



 Conheci e fiquei amigo de Natália Correia em 1978, quando me recebeu em sua casa na Rua Rodrigues Sampaio, em Lisboa, juntamente com outros membros do Grupo de Teatro da Cooperativa 'A Sacavenense'.

Já na década de 80, foram muitas as noites passadas no seu bar 'O Botequim' com tertúlias de poesia e teatro.
Sabendo Natália que eu gostava muito deste seu poema, então musicado e cantado por José Mário Branco, desafiou-me a cantá-lo acompanhado por 2 músicos.
Recebi aplausos, mas não fiquei convencido que tenha feito boa figura. 🙂

QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência
dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte.

NATÁLIA CORREIA
(São Miguel, Açores, 13 de setembro de 1923 - Lisboa, 16 de março de 1993)

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"Horta do Zorate" é o blogue pessoal de Alberto João (Catujaleno), cidadão do mundo em autoconstrução desde 1958.