A acusação de tentar interferir na orientação editorial de uma cadeia de TV através de orientações dadas a uma empresa sob tutela governamental é muito grave. É suficientemente grave para ser levada a sério por toda a gente: acusado, acusadores e espectadores. É suficientemente grave para, desde logo, não ser feita sem indícios e intuitos sérios. É suficientemente grave para ser apreciada com gravidade.
Mas nas primeiras audições parlamentares sobre liberdade de informação, anteontem, ficou claro que ninguém ali parece levar a acusação a sério. Ou que ninguém ali acha que se trata de uma acusação séria (talvez porque ninguém ache realmente mal governos interferirem na comunicação social, excepto se forem os governos dos outros?). Assim, convocou-se um pivot de uma TV privada que se queixa de que um jornal privado lhe censurou uma crónica na qual basicamente contava que lhe contaram que o primeiro--ministro, à conversa com um terceiro num restaurante, lhe teria chamado doido (ou maluco?). Em declarações anteriores, o pivot assumira ter decidido não publicar a crónica quando o director do jornal lhe vocalizara por telefone as suas dúvidas sobre ela. No Parlamento surgiu uma nova verdade: foi o director a decidir a não publicação. O pivot lembra-se tão mais perfeitamente quanto estava com a mulher na cama a ler um livro de Mailer sobre Hitler e o telefonema do director do jornal lhe evocou "a banalidade do mal", expressão de Hannah Arendt a propósito do nazismo.
O mal, pois: o pivot garante que o telefonema do director do jornal é uma "censura" por "interferência governamental". Em duas horas de audição parlamentar em directo na TV, ninguém lhe exige que o prove. Exigir ou até solicitar explicações, justificações, factos, é, ficámos a saber, coisa de nazis, não de gente de bem. Muito menos de deputados. Ou jornalistas: no mesmo dia foi notícia um blogue criado para apoiar o PS nas legislativas. Um dos membros passou aos outros mails de "assessores governamentais" com informação sobre actividade do Governo e respectivo argumentário. "Governo montou rede de apoio na Internet"/ "Campanha com meios públicos", dizem duas páginas de jornal que se eximem de explicar por que motivo assessores governamentais não podem responder a pedidos de informação ou participar em campanhas ou até em blogues. Para quê? É mais uma corajosa denúncia da "rede tentacular do Governo", seguida ontem pela revelação de que o tal membro do blogue que recebia os mails foi contratado pelo Governo (muitos meses antes de o blogue começar) para, como economista, fazer um estudo qualquer. Caramba, querem mais quê? Seja quem for que trabalhe para o Governo ou troque mails com pessoas do Governo ou se atreva a "defender" o Governo, está na tramóia, na "rede". É do mal. E ai dos que não o condenam, dos que não o perseguem, dos que não o denunciam, dos que não o cospem e execram, dos que não o abjuram, dos que pedem provas. Arderão na mesma fogueira.
É banal, é. E mete tanto nojo que não se surpreendam se as pessoas não levarem nada disto - nada mesmo - a sério.
Mas nas primeiras audições parlamentares sobre liberdade de informação, anteontem, ficou claro que ninguém ali parece levar a acusação a sério. Ou que ninguém ali acha que se trata de uma acusação séria (talvez porque ninguém ache realmente mal governos interferirem na comunicação social, excepto se forem os governos dos outros?). Assim, convocou-se um pivot de uma TV privada que se queixa de que um jornal privado lhe censurou uma crónica na qual basicamente contava que lhe contaram que o primeiro--ministro, à conversa com um terceiro num restaurante, lhe teria chamado doido (ou maluco?). Em declarações anteriores, o pivot assumira ter decidido não publicar a crónica quando o director do jornal lhe vocalizara por telefone as suas dúvidas sobre ela. No Parlamento surgiu uma nova verdade: foi o director a decidir a não publicação. O pivot lembra-se tão mais perfeitamente quanto estava com a mulher na cama a ler um livro de Mailer sobre Hitler e o telefonema do director do jornal lhe evocou "a banalidade do mal", expressão de Hannah Arendt a propósito do nazismo.
O mal, pois: o pivot garante que o telefonema do director do jornal é uma "censura" por "interferência governamental". Em duas horas de audição parlamentar em directo na TV, ninguém lhe exige que o prove. Exigir ou até solicitar explicações, justificações, factos, é, ficámos a saber, coisa de nazis, não de gente de bem. Muito menos de deputados. Ou jornalistas: no mesmo dia foi notícia um blogue criado para apoiar o PS nas legislativas. Um dos membros passou aos outros mails de "assessores governamentais" com informação sobre actividade do Governo e respectivo argumentário. "Governo montou rede de apoio na Internet"/ "Campanha com meios públicos", dizem duas páginas de jornal que se eximem de explicar por que motivo assessores governamentais não podem responder a pedidos de informação ou participar em campanhas ou até em blogues. Para quê? É mais uma corajosa denúncia da "rede tentacular do Governo", seguida ontem pela revelação de que o tal membro do blogue que recebia os mails foi contratado pelo Governo (muitos meses antes de o blogue começar) para, como economista, fazer um estudo qualquer. Caramba, querem mais quê? Seja quem for que trabalhe para o Governo ou troque mails com pessoas do Governo ou se atreva a "defender" o Governo, está na tramóia, na "rede". É do mal. E ai dos que não o condenam, dos que não o perseguem, dos que não o denunciam, dos que não o cospem e execram, dos que não o abjuram, dos que pedem provas. Arderão na mesma fogueira.
É banal, é. E mete tanto nojo que não se surpreendam se as pessoas não levarem nada disto - nada mesmo - a sério.
Fernanda Câncio in DN online, 19-02-2010
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