Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A última crónica de Saldanha Sanches: Os papa-reformas

De que serve aumentar o IVA ou tributar as mais-valias, se o Estado continua a esbanjar recursos?


Fala-se muito, nos últimos tempos, em medidas para reduzir o défice. Medidas fiscais, diz-se até, de justiça fiscal.

O aumento do IVA é compreensível e mais justificado do que a redução populista nas cadeiras dos bebés ou nos ginásios, que os consumidores nunca sentiram no bolso. Há pouco tempo foi a aprovação da tributação das mais-valias em IRS para acções detidas há mais de doze meses - medida justa, pois a não tributação era uma singularidade portuguesa. Para as acções alienadas antes da entrada em vigor da lei, a tributação é claramente retroactiva. Mas há na Constituição mais princípios do que o princípio muito tropical da não retroactividade da lei fiscal - e a possibilidade financeira de manter o Estado Social é apenas um deles.

Em qualquer caso, a justiça fiscal é uma questão que não se coloca só do lado da receita pública. Receita e despesa são o verso e o anverso do problema da justiça fiscal. É também muito provável que o esforço financeiro venha a atingir a segurança social, as pensões, as reformas.

Ora, de nada serve aumentar o IVA, ou tributar mais-valias, se o Estado continua a esbanjar recursos.

No esbanjadouro são muito claros dois tipos de papa-reformas: as obras públicas desnecessárias e os papa-reformas em sentido próprio.

O Estado (o Governo, o primeiro-ministro) vive agrilhoado a um conjunto de compromissos políticos, arranjinhos, promessas, vassalagens, dívidas que paga periodicamente em quilómetros de auto-estradas, túneis e, agora, em TGV com paragens em todas as estações e apeadeiros do poder local (desenhado em cima do mapa da volta a Portugal em bicicleta). Já todos sabemos que Portugal tem mais quilómetros de auto-estrada do que muitos países mais desenvolvidos, que não fazem sentido muitas dessas estradas e que é um absurdo havê-las sem custos.

O que é uma verdadeira esquizofrenia é que nada se faça neste momento de verdadeiro aperto das finanças públicas. E o discurso da oposição, que defende a suspensão das grandes obras públicas, mais parece um salivar em vésperas de poder, um repto para que se guarde o melhor vinho para depois de eleições - e não uma verdadeira preocupação com as finanças, ou seja, com os contribuintes.

Além das vassalagens, não podemos esquecer os outros papa-reformas, profissionais da acumulação de reformas públicas, semipúblicas e semiprivadas. Basta ver o caso do Banco de Portugal, ou outros menos imorais, que permitem que uma série de cidadãos - gente séria, acima de qualquer suspeita - se alimente vorazmente, em acumulações de pensões, reformas e complementos, que começam a receber em tenra idade. Muitas vezes até com carreiras contributivas virtuais, sem trabalho e com promoções (dizem que para isto são muito boas a Emissora Nacional / RTP e a Carris).

Tudo isto, como sempre, é feito ao abrigo da lei. É que isso dos crimes contra a lei é para os sucateiros. O problema é que a lei que dá é refém dos beneficiários que tiram e da sua ética.



Texto de Saldanha Sanches in Expresso online, 21-5-2010
Imagens in Google


Nota do Zorate:

José Luís Saldanha Sanches (1944-2010), professor universitário e fiscalista, morreu no passado dia 14 de Maio, aos 66 anos, vítima de cancro. O Expresso publicou na edição de papel de 15 de Maio, esta sua última crónica. Ditou-a na semana em que faleceu, já internado no Hospital de Santa Maria.

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"Horta do Zorate" é o blogue pessoal de Alberto João (Catujaleno), cidadão do mundo em autoconstrução desde 1958.