«Não, não estou a falar das sondagens. Estou a falar do "caso Vítor Baptista" e do "caso Ana Paula Vitorino/Mário Lino". São gravíssimos, mas já ninguém liga. Sócrates está morto, mas levou consigo a nossa dignidade pública.
I. No início do mês, um braço direito de Sócrates (André Figueiredo) foi acusado de tráfico de influências por um deputado do PS. Vítor Baptista, o dito deputado, disse que foi aliciado com um cargo numa empresa pública (eis a grande utilidade "social" do Estado) a troco da sua não-recandidatura ao PS de Coimbra. Se não me engano, André Figueiredo vai processar Vítor Baptista, invocando a ladainha do costume: "Ai o meu bom nome". Mas o ponto aqui é outro: o Ministério Público já abriu um inquérito a este caso? Está aqui em causa um possível crise de tráfico de influências. Um crime público, portanto. Mas, até agora, ainda não vimos nenhuma actividade do MP. Está tudo a dormir na rua Politécnica? Ou será que as guerras civis entre procuradores ocupam toda a energia dos ditos procuradores? E o pior é que tudo isto se passa perante a passividade do país, em geral, e das elites, em particular. Já ninguém liga. Os anos Sócrates mataram aquilo que restava da nossa moral pública.
II. Entretanto, rebentou um dos casos mais graves de sempre: pela primeira vez, uma ex-governante, Ana Paula Vitorino, disse claramente que foi pressionada por um ministro, Mário Lino, no sentido de beneficiar x e y . Isto é de uma gravidade absoluta. Porque Ana Paula Vitorino quebrou, e ainda bem, a Omerta socialista. Mas - lá está - já ninguém liga. E porquê? Será por causa do debate sobre o orçamento? Com certeza, o debate sobre o orçamento consumiu o oxigénio mediático. Mas, mesmo sem orçamento para discutir, este caso não teria o impacto que devia ter. Porque já ninguém liga. O regime funciona apenas de forma mecânica. Não tem vitalidade moral.
III. Estes dois casos constituem a estocada final em Sócrates. Mas o pior é que Sócrates leva consigo a nossa dignidade enquanto comunidade política, enquanto espaço público. E, neste ponto, convém frisar o seguinte: todo o espaço público está ligado à máquina, mas há um actor que se destaca pelo ar particularmente cadavérico - o PS. O que dizer do PS? O PS aguentou Sócrates mesmo quando este se envolveu nos escândalos e casos que todos conhecemos. O PS aguentou "socráticos" inenarráveis como o senhor dos gravadores. É triste, mas a verdade é esta: o PS, meus amigos, só começará a expulsar Sócrates quando as sondagens indicarem a morte política do primeiro-ministro. Ora, tendo em conta os últimos sinais , os anjos bons do PS vão começar finalmente a aparecer. Que bravura.»
Henrique Raposo, Expresso online, 29-10-2010
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