"Chamaram-lhe muitas coisas. ‘O rapaz do brinco’. Génio. Louco. Nos tempos do V. Setúbal, dois colegas deram com ele frente a um espelho, durante um estágio, a falar para a própria imagem: "Ó meu Deus, porque me fizeste tão belo?" A alcunha ficou, ‘Meu Deus’. Devido a uma certa fanfarronice, também lhe chamavam ‘Gargantas’. Mas para si mesmo era apenas ‘O Maior’. E isso resumia a sua vida. O maior, para o Bem e para o Mal.
Se fosse vivo, Vítor Baptista faria hoje 60 anos. Nasceu em Setúbal e no Vitória iniciou-se no futebol aos 13 anos, quando já trabalhava como electricista. No percurso juvenil de-senvolveu qualidades acima da média e aos 18 anos o seleccionador José Maria Pedroto chamou-o à selecção de juniores. Estávamos em 1967, ano de outra estreia, na equipa sénior do Vitória, contra o Leixões, em jogo da Taça de Portugal. Era ainda júnior e do clube recebia em géneros: refeições pagas na Pensão Vitória.
A emergência de um talento que não tardaria a ser cobiçado obrigou os dirigentes a oferecer-lhe contrato profissional. 'Dois contos e quinhentos por mês', recorda Fernando Tomé, antiga glória do futebol sadino e o melhor amigo de Vítor Baptista nesses tempos. 'Tratávamo-nos por ‘irmão’. Houve um jornalista que um dia até nos chamou ‘irmãos siameses’.' Tomé relembra o Vítor Baptista desses tempos como 'um menino grande'. 'Para ele, a vida era uma brincadeira, um grande jogo. Tinha coração de ouro, dava a camisa pelos amigos, mas não levava as coisas a sério. Isso haveria de ser-lhe fatal.'
Após avançar do meio-campo para o ataque, Vítor Baptista marcou 33 golos pelo V. Setúbal em duas épocas. Era o jogador mais cobiçado do futebol português, com o passe avaliado em 6 mil contos. Uma fortuna em 1971. O Vitória fazia tudo para segurar a pérola mas era impossível. Surgem notícias de conversações com o Sporting, e isso bastou para o Benfica ‘perder a cabeça’:ofereceu uma das suas estrelasde sempre, José Torres, juntou-lhe dois jogadores de bom potencial, Matine e Praia, acrescentou 3 mil contos – e ganhou a corrida.
Na Luz, Vítor Baptista viria a conquistar cinco títulos de campeão nacional. Jogava na Selecção, ganhava bom dinheiro – e fazia todos os dias a viagem entre Setúbal e Lisboa no seu fantástico Jaguar 4.2, um ícone automobilístico da época. Estava no topo.
Sem que se saiba muito bem quando e onde, Vítor Baptista iniciou então uma descida vertiginosa ao Inferno. Enquanto o corpo aguentou, conciliou futebol e vícios. Voltou ao V. Setúbal, jogou no Boavista, andou por divisões secundárias – e acabou perdido nos distritais. Onde já só recebia uma sandes como ‘ordenado’. Para alimentar a dependência da droga e do álcool, começou a roubar. Foi condenado e esteve preso. Mãos amigas tentaram ajudá-lo mas já era demasiado tarde. Morreu com 50 anos. Passou pela vida quase à velocidade da bola saída dos seus pés. Ou terá sido a vida que passou por ele?
PERFIL
Vítor Baptista começou a jogar futebol nas escolas do V. Setúbal com 13 anos. Com idade de júnior, estreou-se na equipa sénior (1967). Jogou no Benfica de 1971/72 a 1977/78. Voltou ao V. Setúbal (1979). Seguiram-se Boavista, Earth Quakes (Estados Unidos), Amora, Montijo, U. Tomar, Monte da Caparica – e acabou no Estrelas do Faralhão, equipa dos regionais de Setúbal, em 1985/86
UMA VIDA DIFERENTE
O isqueiro de Pedroto: Ao serviço do V. Setúbal, Vítor Baptista teve uma tarde de glória nas Antas. Ao intervalo do jogo com o FC Porto, Pedroto, treinador sadino, acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro que V. Baptista cobiçou. O técnico promete-lhe a preciosidade se ele marcar dois golos. Ele marcou mesmo e ao segundo correu para o banco a reivindicar o prémio.
Motorista com boné: Vítor Baptista mudou-se para o Benfica mas continuou a morar em Setúbal. Comprou um Jaguar e nos primeiros tempos arranjou um motorista para o conduzir aos treinos. Um motorista com boné.
História de fim triste: Quando a sua vida já era um pântano, Vítor Baptista trabalhou, por caridade da Câmara de Setúbal, num jardim e depois no cemitério. Vivia numa barraca. Mas dizia-se rico. 'Nasci nu e agora tenho um trapo para me vestir. Vou mais rico desta vida do que quando vim ao Mundo.'
ESTÓRIAS DE UM PERCURSO ACIDENTADO
O brinco: A história do brinco é incontornável. Perdeu-o num dérbi após marcar o golo do Benfica que deu a vitória sobre o Sporting. Nunca o encontrou e no final do jogo queixou- -se: 'Perco dinheiro a trabalhar. O brinco valia 12 contos e o prémio de jogo são só 8.'
O ‘Maior’: Em Outubro de 1976, Vítor Baptista renova pelo Benfica. Dá então uma entrevista ao jornal ‘A Bola’ que faz história. A uma pergunta do jornalista Joaquim Rita, responde: 'Sou o melhor jogador português. Há outros bons, como o Chalana, mas eu sou o melhor.' Nascia uma lenda.
Rebelde: O episódio ficou conhecido como ‘o caso de Chipre’. Antes de um jogo entre selecções, Vítor Baptista chegou atrasado a um treino. Após a chamada de atenção, insulta Juca, o seleccionador. Chama 'malucos' aos colegas. Nunca mais jogou na Selecção.
Adeus à Luz: Em 1977, sai do Benfica porque exige 650 contos mensais. O clube dá 450 e um Porsche Carrera. Recusa e regressa a Setúbal, por 100 contos/mês. Já no Boavista, ‘vinga-se’ com um golo na vitória por 2-1, na Luz.
MEMÓRIAS
Toni (treinador e ex-colega no Benfica): O Vítor Baptista era um jogador de ontem e de hoje. Nos nossos dias seria pago a peso de ouro, pois tinha aptidões físicas e técnicas fora do comum. Foi uma lástima vê-lo entrar no mundo da droga. Era um ser solidário e muito amigo do seu amigo. Algumas ‘amizades’ levaram-no ao abismo.
Octávio (ex-colega no V. Setúbal): Sempre revelou uma forma muito própria de estar na vida. No momento certo faltou- -lhe uma voz amiga. Os clubes, naquele tempo, não estavam preparados para lidar com algumas situações. O que aconteceu depois é lamentável. Prefiro recordá-lo como o grande jogador que foi.
Tomé (ex-colega no V. Setúbal): Era um bom coração. No regresso a Setúbal, depois de jogar no Benfica, não quis jogo de apresentação. Preferiu uma tourada, que ele próprio organizou. A receita, fez saber, seria metade para ele e metade para o Asilo Paula Borba. Mas nunca houve tourada porque se esqueceu de arranjar os touros. Era assim o Vítor."
in CM online, 18-10-2008
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