Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

'A Nau Catrineta' de Almeida Garrett




Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora senhores,
Uma história de pasmar.
Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.
Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.
Deitam sortes à ventura,
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão-general.
– «Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal!»
– «Não vejo terras de Espanha
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar.»
– «Acima, acima, gajeiro,
Acima, ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal.»
– «Alvíssaras, capitão,
Meu capitão-general!
Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar.»
– «Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.»
– «A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.»
– «Dar-te-ei tanto dinheiro,
Que o não possas contar.»
– «Não quero o vosso dinheiro,
Pois vos custou a ganhar.»
– «Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.»
– «Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar.»
– «Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíssaras te hei-de eu dar?»
– «Eu quero a nau Catrineta,
Para nela navegar.»
– «A nau Catrineta, amigo,
É de el-rei de Portugal.
Pede-a tu a el-rei, gajeiro,
Que ta não pode negar.
(in "Romanceiro", de Almeida Garrett)

 

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"Horta do Zorate" é o blogue pessoal de Alberto João (Catujaleno), cidadão do mundo em autoconstrução desde 1958.