«Por essa Europa fora, o carácter assassino do comunismo é um facto. O comunismo não matou devido à maldade de Estaline. O comunismo matou, porque esse sistema exige a morte dos adversários. Para espanto dos bifes, isto ainda causa polémica em Portugal.
A convite da Alêtheia , (re)apresentei este grande livro . Aqui fica o texto sobre um tema que ainda causa polémica em Portugal, a terra do exotismo esquerdista.
I. Este é um dos grandes livros da década 2000-2010, independentemente do género. Por norma, quando pensamos em livros do ano ou da década, temos sempre a queda para a literatura, sobretudo para o romance. Há em cada um de nós um academia sueca. E isso acaba por ser injusto para outros géneros, a começar pela história. Neste sentido, não tenho dúvidas em considerar que - numa lista de livros da década - Estaline de Simon Sebag Montefiore merece tanto respeito como A Estrada de Cormac McCarthy.
II. Quando comecei a ler o livro, confesso que estava desconfiado em relação à capacidade da biografia para apanhar todas as dimensões do totalitarismo. Eu pensava que esse fenómeno só podia ser captado por um livro de ciência política ou por um livro de história clássico como Os Ditadores de Richard Overy . Ora, rapidamente percebi que estava errado, rapidamente percebi que a biografia é mesmo o melhor género para captar todas as faces do totalitarismo. Porquê? Porque o registo narrativo/literário (e não analítico) é a única forma de captar o horror do totalitarismo comunista. Só uma narrativa conseguiria apanhar o desprezo pela vida humana de Estaline, as bebedeiras e orgias desta nomenclatura, a amoralidade assassina e sexual de Béria, o clima de paranóia do Kremlin, as invejas e traições ao mais alto nível, a forma burocrática como se mandava matar ou deportar através de quotas ("uma cidade de Stalinabad (Askabad) recebeu uma quota de 6277", p. 251), a patética bajulação que a corte lançava sobre Estaline (bajulação que se assemelhava a um "libreto de ópera bufa", p. 487), a irracionalidade de certas medidas (ex: a forma como Estaline conduziu os primeiros meses da II Guerra é puro nonsense; veja-se a execução dos seus próprios generais quando diziam a verdade).
III. Mas, atenção, Montefiore não desliga este caos assassino da ideologia comunista. Ainda há quem separe a bondade da ideologia comunista da maldade de Estaline. Como salienta Montefiore, este vício de análise tem "o efeito de acusar unicamente um louco e não nos oferece qualquer lição" sobre "o perigo das ideias e sistemas utópicos" (p. 12). Portanto, o grande mérito do autor acaba por ser o estabelecimento de uma ligação directa e causal entre a desumanidade intrínseca do marxismo-leninismo e a desumanidade da elite estalinista. O comunismo, para ser implementado, precisava de homens que encarassem a morte dos adversários como um instrumento político legítimo.
IV. Em paralelo, convém reparar num ponto: milhares e milhares de idealistas apoiaram Estaline. Para nós, aqui em 2011, seria mais confortável pensar e dizer que milhões de pessoas morreram devido à acção de um monstro desumano (Estaline). Lamento, mas não foi assim. Como diz Montefiore, a "base do poder de Estaline dentro do partido não era o medo: era o encanto" (p. 64). As práticas sanguinárias do regime não eram vistas como um erro, mas sim como um dever revolucionário. O extermínio dos Kulaks, o Grande Terror (1937-38), as deportações dos povos do Cáucaso e da Crimeia (durante a guerra): tudo isto foi feito com enorme zelo revolucionário. Mais: a brutalidade desumana de Estaline e associados era um motivo de orgulho para os milhares e milhares de bolcheviques. Porque o carácter - supostamente - infalível do marxismo exigia efeitos imediatos na realidade. Qualquer plano teórico saído do ventre mágico do marxismo-leninismo tinha de ser colocado em prática, mesmo que isso implicasse a morte de milhões. Em suma, Montefiore mostra que Utopia sanguinária é um pleonasmo. O Gulag não foi um erro. Foi a consequência lógica do marxismo-leninismo.
PS: Em qualquer país europeu, esta história comunista é isso mesmo: história. Mas, em Portugal, a história comunista continua a fazer política. Estamos em 2011, e estalinistas e trotskistas mordem-se no parlamento . Não é possível explicar o Portugal político a um estrangeiro. Este exotismo esquerdista é uma marca que nos torna incompreensíveis.»
Henrique Raposo, in Expresso online, 16-02-2011
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