"Crise fez disparar os vendedores de tralha.
Há cada vez mais, e mais variada gente, a tentar o desenrascanço na Feira da Ladra.
Tem fama de ser um antro de larápios e gente que se orienta na obscuridade de negócios pouco recomendáveis para candidatos à sacristia...
O JN esteve lá ontem, montou um estaminé com tralha de casa e vendeu tudo por tuta e meia. A chegada aconteceu em simultâneo com o nascer do sol. Já abundava a azáfama, gente por todo o lado a estender plásticos e a exibir o stock de objectos e produtos para venda. Essa é a hora dos espertalhões: indivíduos munidos de lanterna abordavam os recém-chegados e ofereciam quantias irrisórias por tudo aquilo que brotava das mochilas - e isso, claro, para ser revendido mais tarde, ao lado, a outros preços.
Cedo se percebeu onde é a zona "hardcore" da feira: lá em baixo, em redor da estátua de Bernardino António Gomes. Bastou passar lá para se sentir uma certa tensão no ar. Proliferavam os "mitras" com as suas indumentárias hip-hop, murmurando ao transeunte se acaso desejavam algum telemóvel topo de gama (larapiado horas antes, está visto).
Na zona mais alta do Campo de Santa Clara, o ambiente era mais leve. Muitos dos vendedores são reformados que fazem pela vida e procuram um extra para completar a parca quantia que recebem da reforma. Estudantes também os havia. E muitos desempregados que ali parecem ter a sua única fonte de rendimento. Mas também havia, e não pouca, gente da classe média eventualmente "à rasca" com a prestação da casa e afins - e lá foram tentar angariar mais uns trocos para serem canalizados para as contas do supermercado. A clientela era da mesma estirpe, ainda que fosse notória a predominância de imigrantes: cerca de dois terços daqueles que nos abordaram eram estrangeiros, com particular relevo para os africanos e os de países do Leste da Europa. Procuravam, essencialmente, roupa quente para o Inverno: camisolas de lã a um euro, casacos de fazenda a dois e por aí fora. Um senegalês que não sabia falar português, comprou-nos um par de sapatilhas usadas, não obstante serem um número abaixo e ficarem-lhe apertadas. Pediu desconto com a justificação de que iria gastar mais uns euros no sapateiro para alargar o calçado.
Os portugueses, por seu turno, pareciam ter particular interesse nos telemóveis, não obstante serem daqueles de 1997 em avançado estado de decomposição.
Às tantas, surgiu um sujeito de colete reluzente e cara de ASAE - a expressão carrancuda imprimida na face e o ar soberano que nos questionou: "A sua licença?". Curiosamente, não fez o mesmo aos comerciantes vizinhos - até porque o vendedor ao nosso lado zarpara para parte incerta antes que a autoridade lá chegasse.
Todo aquele que se aventura a vender na Feira da Ladra deve fazê-lo com um espírito de flexibilidade: não pode, ou não deve, haver obstinação nos preços fixos. Tudo deve ser regateado.
Alguns dos vendedores ouvidos pelo JN queixaram-se do crescente aparecimento de tendas para venda exclusiva de produtos novos, algo que consideram ser uma descaracterização da feira .
Todavia, e no que diz respeito aos artigos usados, não deixou de ser curioso e hilariante observar a vastíssima panóplia dos objectos que lá se encontram. De electrodomésticos com ar suspeito, pedaços de ferrugem de proveniência e utilidade desconhecida, telemóveis e dvd´s, toneladas de roupa, tupperwares recheados com moedas de um escudo ou frascos de perfume vazios. Tudo vale - desde que dê dinheiro para o pão para a boca. "
in JN online, 09-11-2008
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