Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

domingo, 14 de dezembro de 2008

Afinal não elegemos os deputados...


"Hegemonia partidária manifesta-se na perpetuação no cargo.
Académicos apontam caminhos para abrir o sistema à sociedade.
Conhece os deputados do seu círculo eleitoral? Participou na escolha? Pode escrutinar o seu desempenho? Estas questões voltaram à ordem do dia na sequência do episódio da ausência de mais de 30 deputados na votação do projecto de resolução do CDS/PP que visava suspender o processo de avaliação dos professores.

Num país onde os partidos detêm um quase total monopólio em matéria de recrutamento de candidatos a cargos políticos e de controlo do exercício dos seus mandatos, o "não" é a resposta comum às três perguntas. Daí que valha a pena empreender uma reflexão sobre os caminhos a trilhar, com vista a um maior envolvimento dos cidadãos.

O periódico exercício do direito de voto não significa que elejamos os deputados. De facto, votamos num partido, que apresenta listas hierarquizadas. E pode muito bem acontecer que os eleitos acabem por não exercer os mandatos - por transitarem para o Governo ou para empresas públicas, por exemplo - defraudando as expectativas dos eleitores.

É muito restrito o núcleo de políticos com efectiva capacidade para influenciar as escolhas - melhor: para as determinar em absoluto. Se em regra a propositura de candidatos cabe às estruturas intermédias dos partidos, quem tem a última palavra, incluindo o poder de veto, são as cúpulas. No PS, o líder decide sobre 30% dos membros das listas. O PSD também tem uma quota, não prevista nos estatutos. E no CDS cabe ao presidente indicar cinco candidatos em Lisboa e três no Porto - na prática os que têm eleição garantida.

Se não somos chamados a participar na escolha, é menor ainda a nossa capacidade de escrutinar - quanto mais sancionar! - os deputados. Constitucionalmente, os eleitos não representam o seu círculo, representam a Nação. O seu mandato é livre e inalienável. Na prática, ocorre o que o falecido dirigente comunista Luís Sá, politólogo, designava de "mandato imperativo de partido".

Integrado num grupo parlamentar, o deputado deve respeitar as orientações da direcção da bancada, que por sua vez responde perante o partido. Todos os estatutos partidários, com excepção dos do Bloco de Esquerda, impõe obediência e disciplina de voto, bem como sanções, que podem ir até à expulsão. Normas que comprometem a autonomia dos deputados.

Em caso de conflito, preservam o mandato - Luísa Mesquita, em rota de colisão com o PCP, permaneceu no Parlamento, com o estatuto de "não-inscrita". Porém, os partidos dispõem de outra arma, igualmente eficaz: a não reeleição. Daniel Campelo, o deputado do "queijo limiano" - a viabilização pelo voto de um orçamento apresentado pelo Governo socialista - conheceu o sabor dessa punição: não voltou a integrar as listas.

Ter sido deputado é "salvo-conduto"
É a precisamente a elevada taxa de reeleição que revela o estudo "Organizações partidárias, modelos e critérios de recrutamento parlamentar", esta semana tornado público. Elaborado no âmbito do projecto "Os deputados portugueses em perspectiva comparada: eleições, liderança e representação política", da responsabilidade do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE, o estudo demonstra que a principal condição para se ser deputado é... ter sido.

De acordo com a autora - Conceição Pequito, docente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas -, a fórmula mais eficaz de conhecer as características dos deputados não é analisar a composição do Parlamento ao longo dos anos - muito volátil por causa das constantes substituições - mas as listas candidatas. A estratégia seguida no estudo, de que André Freire foi co-autor, consistiu assim em distinguir nelas os candidatos elegíveis dos não elegíveis. Conclusão, transversal aos partidos: o primeiro grupo integra a elite política; o segundo, com reduzidas perspectivas de eleição, aproxima-se mais das características da população. A apregoada aproximação à sociedade é figura de retórica.

Conceição Pequito atribui à sobrevivência das mesmas figuras em posições cimeiras nas listas o "progressivo fechamento" do órgão legislativo, já que impede a renovação da oferta eleitoral. A experiência parlamentar, "salvo-conduto" para a recandidatura, é (tal como a carreira partidária) especialmente valorizada na hora da escolha. Daí que o primeiro objectivo do deputado seja assegurar a reeleição, o que implica fidelidade ao partido, não ao eleitor.

A hegemonia partidária não se consolida apenas por esta via. O estudo demonstra que é residual a presença de independentes nas listas, mesmo em posição não-elegível. E detecta a presença de "páraquedistas", designados como "outsiders". O caso de José Raúl Santos, alentejano de Ourique colocado na lista do PSD pelo Porto, foi há três anos ilustrativo da estratégia. Trata-se de personalidades cuja eleição o partido quer assegurar, transferidas para círculos onde não correm riscos, mas cuja realidade desconhecem . "Há desenraízamento local dos deputados e por isso pouco investimento no trabalho político junto dos eleitores", assinala Conceição Pequito.

O Parlamento, observa a investigadora, "é composto cada vez mais por pessoas que vivem somente da política e do seu exercício, bem como por pessoas que tendem a ser seleccionadas, premiadas e promovidas pela actividade que desempenham no interior dos seus partidos". O resultado é a "profissionalização" dos parlamentares, cada vez mais distantes do "país real". E um forte contributo para a "deriva partidocrática da democracia".

Maior abertura, precisa-se
Como combater o fenómeno, criando condições para uma maior participação dos cidadãos, afinal a essência do sistema democrático? Alertando para o facto de diversos inquéritos demonstrarem que a confiança dos cidadãos é menor no Parlamento do que no Governo, José Manuel Leite Viegas, também investigador do CIES, nota que uma das vias pode ser a extensão de candidaturas independentes - hoje autorizadas até ao nível municipal - às eleições legislativas.

O professor do ISCTE detecta nos partidos um "excessivo medo da indisciplina". Embora admita que não é possível abdicar da disciplina de voto, enquanto instrumento de governabilidade, é favorável a que seja circunscrita a votações decisivas, como os orçamentos de Estado, e a propostas que correspondam a "compromissos eleitorais fortes".

No plano do trabalho político junto dos eleitores, também entende que há melhorias a introduzir. A adopção de mecanismos institucionais que o incentivem é importante, mas Leite Viegas considera que se trata de "uma questão de cultura política, não apenas de regras e leis". E faz questão de salientar que os cidadãos estão atentos. Já perceberam que algo mudou com a reforma do Parlamento, concebida pelo socialista António José Seguro.

Quanto ao recrutamento, "deveria haver da parte dos partidos uma maior aceitação do risco na designação de candidatos", diz. Um processo mais aberto e mais participado, anterior à decisão, é o que propõe. A introdução de "directas" para a eleição dos líderes partidários - no PS, no PSD e no CDS - já revelou essa abertura.

A limitação de mandatos e a proibição de acumulação de cargos em órgãos partidários já constituiriam, aos olhos de Conceição Pequito, um passo sério no sentido de combater a perpetuação de deputados em funções (no decurso da investigação efectuada para a sua tese de doutoramento, apresentada em 2002, descobriu um vasto grupo de parlamentares com 16 anos de exercício do cargo).

Para a docente, também investigadora do Centro de Administração e Políticas Públicas do ISCSP, a melhor solução seria a realização de eleições primárias para seleccionar candidatos dentro dos partidos, abertas a militantes ou, mesmo, a simpatizantes. Diminuiriam o excessivo poder dos partidos e, democratizando o sistema, promoveriam a renovação. Aumentaria, acredita Conceição Pequito, o interesse dos cidadãos pela vida partidária e, por certo, a filiação. Mais: "Seria favorecida uma nova relação dialéctica entre partidos e sociedade civil, baseada num método não puramente técnico mas significativamente político, capaz de garantir uma competição eleitoral genuína entre ideias, programas e pessoas".

A opção não é isenta de riscos, reconhece a investigadora. A personalização, muitas vezes induzida pelo mediatismo dos candidatos, pode tornar-se excessiva. Nos Estados Unidos, onde as eleições primárias têm raízes históricas, foi reduzido o papel dos aparelhos partidários, mas surgiram candidatos fortemente dependentes de lóbis, até no plano financeiro. A alternativa pode ser a concessão, pelos partidos, de meios financeiros iguais a todos os candidatos, para assegurar equidade.

Um sistema desta natureza cria, por outro lado, riscos de divisionismo, no seio dos partidos, que compromete a sua imagem pública. E suscita ainda a questão da estratégia seguida pelos candidatos nas campanhas internas. Se lançarem propostas políticas radicais, para conquistar votos, poderão mantê-las em eleições gerais, caso vençam? A alternativa - uma deliberada "ambiguidade programática" no sufrágio interno - não será melhor."
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in JN online, 14-12-2008

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"Horta do Zorate" é o blogue pessoal de Alberto João (Catujaleno), cidadão do mundo em autoconstrução desde 1958.