Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Um dia na vida de um português em Agosto de 2008...

8h30 – José Silva acorda e constata que a sua casa foi assaltada durante a noite. Espreguiça-se. Toma banho tentando poupar a água, toma o pequeno-almoço tentando poupar o leite e põe-se a caminho do emprego tentando poupar os sapatos.

9h00 – Empurra o carro até à bomba de gasolina e é assaltado duas vezes: a primeira pela gasolineira, que voltou a aumentar os preços do combustível; a segunda por criminosos armados, que lhe levam o pouco que ainda restava na carteira. Boceja. Conclui que prefere os segundos assaltantes, na medida em que roubam menos e com menor frequência. Nota que, apesar disso, a polícia não faz qualquer esforço para apanhar os primeiros.

10h00 – Já na estrada, é vítima de carjacking. Encolhe os ombros. Prossegue a pé.

10h05 – Um gang tenta assaltá-lo. Explica que ficou sem a carteira num assalto anterior.

10h10 – Outro gang tenta assaltá-lo. Fornece a mesma explicação. Os membros do gang colam-lhe um autocolante na lapela para que futuros meliantes saibam que já foi assaltado nesse dia e evitem perder tempo com ele. Recomendam-lhe que retire o autocolante assim que voltar a transportar valores.

11h30 – Vai ao banco levantar dinheiro.

11h32 – Criminosos armados irrompem no banco. Clientes e funcionários formam calmamente uma fila e tiram senhas para serem assaltados por ordem.

11h35 – O criminalista Moita Flores irrompe no banco e começa a comentar o assalto junto de um grupo de clientes. Tece várias considerações sobre um novo tipo de criminalidade violenta que parece estar a aumentar no nosso país, aponta as limitações da polícia e sublinha as incongruências do novo código de processo penal. Alguns clientes oferecem-se para serem sequestrados, caso os assaltantes lhes garantam que os levam para longe do criminalista Moita Flores.

11h45 – O criminalista Moita Flores interpela os assaltantes e comunica-lhes que o método que escolheram para levar a cabo o assalto não é o melhor, criticando sobretudo a não utilização de luvas e tecendo alguns reparos ao plano de fuga, que considera extremamente frágil.

11h46 – Um dos assaltantes dispara duas vezes sobre a perna do criminalista Moita Flores.

11h47 – Clientes e funcionários do banco homenageiam os assaltantes com um forte aplauso.

17h30 – Depois de várias horas de sequestro, o assalto termina. A polícia detém os criminosos, resgata os reféns e amordaça o criminalista Moita Flores, para que vá receber assistência hospitalar.

18h00 – Por sorte, mal acaba de sair do banco, José Silva encontra o seu carro abandonado na berma da estrada. Entra no veículo e dirige-se para casa.

18h05 – É detido pela polícia por se encontrar a conduzir um carro que foi usado em diversos crimes.

20h00 – É identificado e preso. Na cela, verifica que o relato da sua vida é extraordinariamente demagógico e conclui que toda a sua existência podia ter sido inventada por Paulo Portas. Chora.
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Ricardo Araújo Pereira, revista VISÃO online, Sexta-feira, 5 de Setembro de 2008
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"Horta do Zorate" é o blogue pessoal de Alberto João (Catujaleno), cidadão do mundo em autoconstrução desde 1958.