Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

sábado, 2 de julho de 2011

As aventuras e desventuras dos maoistas portugueses


«Estávamos em 75, no ano mais quente da revolução. Uma camioneta com mobiliário retirado da Faculdade de Direito de Lisboa chega à porta da sede do Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP). A comandar a expropriação revolucionária está o camarada Abel (Durão Barroso). Depois de um breve confronto com "o guia do proletariado", o camarada Arnaldo Matos, o militante é obrigado a devolver o mobiliário às salas da universidade.

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O actual presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, é o mais célebre do ex-maoistas. Não porque tenha sido o maior dos adeptos de Mao Tsé Tung, mas porque é aquele que mais importante se tornou na actualidade. O ex-primeiro-ministro do PSD foi militante e dirigente da Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas (FEML), braço estudantil do MRPP, fundado por Fernando Rosas, que editava o "Guarda Vermelho". O MRPP tem origem nos Comités Vietname, que em 21 de Fevereiro de 1968 realizaram uma manifestação frente à embaixada dos Estados Unidos da América, posteriormente transformados na Esquerda Democrática Estudantil. No início dos anos 70, eram hegemónicos num bom número das faculdades de Lisboa. Tinham como bastião a Faculdade Direito de Lisboa, no anedotário da época transformada num pagode chinês. Um dos momentos marcantes da história do MRPP foi o assassinato pela PIDE do seu dirigente, José Ribeiro Santos, durante um plenário estudantil em Económicas (actual ISEG), a 12 de Outubro de 1972. No tiroteio fica morto Ribeiro dos Santos e ferido José Lamego, na altura militante do MRPP e que foi secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros do governo de António Guterres. O vão acusar o PCP de o ter morto a meias com a PIDE. "O fascismo apertou o gatilho e o revisionismo apontou-lhes o alvo - tal é a justa apreciação da sinistra confabulação das forças da classe contra-revolucionária que assassinaram o grande bolchevique José António Ribeiro Santos", garantia a publicação "Honra ao camarada Ribeiro Santos, o povo não te esquecerá!".

O empresário Jorge Coelho, o ministro Nuno Crato, o antigo ministro das Universidades Mariano Gago, até o ex-ministro da Administração Interna Rui Pereira, a mediática procuradora Maria José Morgado, o jornalista José Manuel Fernandes, o historiador Pacheco Pereira são alguns dos muitos ex-maoistas que atingiram posições de destaque na vida económica, académica e política. São muitos e conhecidos, pela simples razão de que os maoistas foram numerosos na década de 70. De 1964 até aos dia de hoje, há registo de dezenas de organizações maoistas no país; um estudo do investigador Miguel Cardina ("O essencial sobre a esquerda radical") recenseia cerca de 70 organizações ligadas a esta corrente ideológica.

Pacheco Pereira (ver post anterior) defende que o maoismo em Portugal provém de dois momentos diferentes: um primeiro devido à ruptura entre chineses e soviéticos, que leva a uma cisão do PCP, e um segundo momento, posterior a 1968, devido à radicalização de sectores da juventude, influenciados pela Revolução Cultural Chinesa e pelo Maio de 1968 em França.

Em 1964, a ruptura sino-soviética leva alguns militantes do PCP, como Francisco Martins Rodrigues, membro do executivo do PCP no interior do país, a romper com o partido. Numa reunião do comité central do PCP em Moscovo em Agosto de 1963, para preparação do VI Congresso, Martins Rodrigues expressa a sua divergência em três pontos fundamentais: defende um levantamento nacional para derrubar a ditadura, aposta na luta armada como uma das formas de luta e critica a estratégia de unidade do PCP com sectores da burguesia no combate ao fascismo, afirmando a necessidade de reforçar "o protagonismo do proletariado". No fundo, tratava-se de adaptar à realidade nacional os slogans da liderança chinesa, na contestação à política soviética da "coexistência pacífica" entre países comunistas e capitalistas na era das armas atómicas.

Um antigo director do "Público", o jornalista José Manuel Fernandes, tinha 11 anos quando se deu o Maio de 68. Quando entrou no liceu começou a frequentar reuniões. A adesão ao maoismo deveu-se à sua necessidade de contestar o regime de uma forma radical e por reacção a uma oposição "chata" que o PCP simbolizava. "Fui a uma ou duas reuniões, regra geral as intervenções mais chatas eram feitas por pessoas ligadas ao PCP, como o Miguel Portas, e identifiquei-me com pessoas com um discurso mais radical e apelativo." A sua militância política começa ligada à acção contra a guerra colonial, na órbita da CMLP (Comité Marxista-Leninista Português), na UEC (ML) (União de Estudantes Comunistas Marxistas-leninistas), cujos membros eram conhecidos no meio estudantil como os Pops, devido à sua plataforma por um ensino popular. Adere ao PCP (ML), facção Mendes, o mesmo em que milita Pacheco Pereira, e depois do 25 de Abril chega em 1976 ao secretariado da UEDP (União dos Estudantes Democráticos e Populares), organização de juventude da UDP, com o actual ministro da Educação, Nuno Crato.

José Manuel Fernandes diz que nas vésperas do 25 de Abril o PCP já tinha recuperado influência em algumas das faculdades (Económicas e Medicina) e dividia a popularidade com estudantes de vários sectores maoistas. "Os trotskistas ou os ''trouxas'', como a gente lhes chamava, eram muito poucos." Esta concorrência era encarniçada, mas não se fazia sem regras: "Tínhamos como adquirido que quando num plenário de estudantes criticávamos alguém do PCP não lhe podíamos chamar ''revisionista'' devido ao perigo de o estar a identificar para os bufos da PIDE. Ficávamos pelo menos claro ''reformista''." Em 16 de Dezembro de 1973, 150 estudantes do secundário reunidos na instalações da Faculdade de Medicina são cercados pela polícia e mais de 50 são detidos. Dormem uma noite na cadeia, "tirando uns poucos, como a Eugénia Varela Gomes, que ficam presos em Caxias", recorda José Manuel Fernandes. A todos os rapazes, com idades à volta dos 16 anos, é cortado pela polícia o cabelo com máquina zero. A carecada tanto é dada ao PCP Miguel Portas como ao maoista José Manuel Fernandes.

A primeira experiência de jornalismo têm-na já depois da revolução. Durante a campanha do Otelo funda-se o jornal com o pequeno título "O 25 de Abril do Povo". "Era para ser um diário, mas passa a semanário e dura só três meses." Depois disso dá-se a reorganização do jornal da UDP "A Voz do Povo". João Carlos Espada, do comité central da UDP, vai dirigir o jornal e José Manuel Fernandes acompanha-o. Diz o jornalista que na altura já não se considerava maoista. "Lembro-me de dois momentos que me fizeram mudar de ideias: o enterro de Mao, em que a nova direcção apagou das fotos a viúva de Mao e os seus apoiantes (o chamado Bando dos Quatro)" e uma das purgas do poder na Albânia, em que foi expulso e posteriormente "suicidado", o antigo primeiro-ministro albanês Mehmet Shehu. "Essas coisas impressionaram-me, acusarem o tipo de triplo espião russo, da CIA e do Vaticano. Simplesmente não podia ser verdade", diz o jornalista. Era duro ser jornalista/militante. "Recebíamos menos que o salário mínimo. Tínhamos de fazer a lista das nossas despesas e davam-nos um salário de acordo com elas. Daí as discussões homéricas entre fumadores e não fumadores, porque os primeiros recebiam mais", lembra, sorrindo.

O trabalho na "Voz do Povo" não se fez sem incidentes. "A certa altura cindimos com o PC(R), o jornal chega a estar cercado", afiança. A "Voz do Povo" continua a ser impressa mais uns meses, até acabar o dinheiro. "Na altura passámos a imprimi-lo na sede do PSR." Na sua redacção passam nomes como Henrique Monteiro, ex-director do "Expresso", ou Manuel Falcão, que chegou a chefe de gabinete de Santana Lopes, quando este foi primeiro-ministro. Durante as eleições presidenciais de 1980, João Carlos Espada apela em editorial no voto em Otelo e José Manuel Fernandes, chefe de redacção, defende o voto útil em Soares Carneiro. O ano de 1981 vai encontrar os dois na fundação do Clube da Esquerda Liberal, com Pacheco Pereira e Manuel Villaverde Cabral. José Manuel Fernandes concorda que o processo de evolução política dos maoistas portugueses tem algum paralelo com a ida para a direita dos maoistas franceses que se converteram nos "novos filósofos", que defendem a economia liberal, mas realça algumas diferenças: "Em meu entender, a maioria dos maoistas pura e simplesmente saiu da actividade política. Votam PS ou até em partidos como o Bloco." Reconheça contudo que há um grupo, ao qual ele pertence, que evolui para "posições mais à direita".

A verdade é que, se nos livrámos do maoismo, não conseguimos fugir do poder dos ex-maoistas. Fortes nas universidades, fazem parte da actual elite do poder. Que o diga José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, que escrevia no "Luta Popular" de 2 de Abril de 1975, o artigo titulado "Que Viva Estaline", em que, para combater o desvio da "linha negra" de Maria José Morgado e Saldanha Sanches escrevia: "O camarada Saldanha Sanches é que não se demarca dos oportunistas, nem pouco mais ou menos, não resistiu à contraprova do campo magnético; mal se falou em Estaline começou a hesitar, titubeou, hesitou, indo cair no campo da contra-revolução, arrastado pelo poderoso campo magnético de que fala o Comité Lenine na sua Directiva." Se trocarmos "euro" por "Estaline", nem mudou assim tanto.»


por Nuno Almeida, jornal i online, 02-7-2011

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"Horta do Zorate" é um blogue pessoal, editado por Alberto João (Catujaleno), cidadão do mundo, fazedor desencostado, em autoconstrução desde 1958.