Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

sábado, 2 de julho de 2011

Pacheco Pereira: "Reuni muitas vezes com um capuz enfiado na cabeça"


«Ainda bem que me faz essa pergunta sobre esse excerto do livro da Zita Seabra que sistematicamente é reproduzido e que não é verdadeiro. Bastava ler com atenção para perceber que há ali um enorme anacronismo. Os acontecimentos a que se refere a citação são de 1966 e a fundação do PCP (ML) no Norte é de 1972. Ora seis anos naquela altura são seis séculos. A citação é mais reveladora da mentalidade de um PC sobre as mudanças que se estavam a dar do que propriamente rigorosa sobre o meu caso. Conheci a Zita Seabra numa tentativa minha de levar a pró-associação de estudantes de liceu para a escola em que eu andava, a Alexandre Herculano. A pró-associação não tinha influência no Porto e era estritamente controlada pelo PCP. Participei em poucas reuniões, uma das quais na casa da família Cortesão, e foi aí que conheci a Zita Seabra. Colaborei no boletim associativo que existia, até fiz uma tradução do Paul Éluard que foi publicada. Nunca quis entrar no PCP, mas compreendo a mentalidade da citação sobre mim, é de alguém que está habituado a uma concepção burocrática do movimento estudantil, que não concebe o activismo da oposição a não ser nos quadros do PCP.




Está a falar do maoismo como uma ruptura cultural e de parte de uma geração como o PCP, mas no seus primórdios o maoismo nasce como uma cisão do PCP quanto à questão da China e é do ponto de vista cultural muito próximo da casa mãe.

No livro que eu publiquei sobre o início do movimento marxista-leninista na Europa, "O Um Dividiu-se em Dois", falo de uma distinção entre aqueles que rompem com o PCP porque são pró-chineses e aqueles que vão ser os "maoistas". Os primeiros apoiavam as teses do Partido Comunista Chinês, que renegam a coexistência pacífica, e defendem as teses da necessidade de uma revolução violenta, considerando que no plano internacional se verificava um levantamento no terceiro mundo contra os imperialismos soviético e norte-americano. O movimento pró-chinês, que é em grande parte constituído por gente que veio dos partidos comunistas, é um movimento de reforma dos partidos comunistas.

Há uma segunda fase, posterior à revolução cultural e ao Maio de 68, e aí o objectivo já não é combater o revisionismo dos partidos comunistas, mas muito mais do que isso. Os seus activistas reivindicam novas formas culturais e de organização. Essa diferença expressa-se pela imitação de algumas práticas que pareciam estar a passar na Revolução Cultural Chinesa ou daquilo que na Europa se imaginava: algumas frases, slogans e textos. Sobretudo uma ideia de espontaneidade e de intervenção directa das massas.

A distinção não se faz também em relação à origem de classe dos sectores sociais que aderem a estes dois tipos de maoismo?

Também. Uma das grandes fragilidades do esquerdismo português, que era muito forte à data do 25 de Abril, é que era essencialmente estudantil e, usando uma categoria em voga na época, "pequeno- -burguês", e não conseguia competir em todos os terrenos com o PCP, que tinha operários, camponeses, intelectuais, gentes das profissões urbanas liberais, empregados. As razões de recrutamento dos pró-chineses, da primeira fase, são diferentes das dos maoistas. Estes últimos são recrutados no meio da revolta estudantil geral que se manifestou nos EUA e na Europa.

O que atraía esses estudantes?

Uma certa interpretação anti-estalinista do estalinismo, que era uma coisa que seduzia muito os intelectuais da época. Contavam-se histórias emblemáticas sobre isso, como o caso da edição do livro de Li Shao-Chi (presidente da China entre 1960 e 1965, caído em desgraça durante a Revolução Cultural). O livro dele "Como Ser Um Bom Comunista" teria sido reeditado em milhões de exemplares com uma faixa a dizer: "Ler para criticar". Estas historietas indiciavam uma diferença em relação ao estalinismo, em que no livro pura e simplesmente desapareceria.

Isso parece contraditório em relação ao facto de na ruptura sino-soviética um dos argumentos de fundo ser a afirmação de que os russos teriam traído os ensinamentos de Estaline.

A China tinha sofrido com a tentativa de Estaline de controlar o Partido Comunista Chinês. A Revolução Cultural chinesa é vista por muitos jovens como um processo de rectificação num país socialista. Esta mescla de ideias, slogans e mitos era muito atractiva para os estudantes e também para muitos jovens operários. O recrutamento fora das universidades é sobretudo feito em sectores mais jovens da classe operária. Essa influência geracional explica que nas vésperas do 25 de Abril o PCP tivesse perdido grande parte da sua influência na universidade, embora tentando, com a criação da UEC, retomar esse controlo. Na maioria das faculdades o PCP tinha perdido a hegemonia que tinha desde os anos 30. É preciso relembrar que se assistia ao fim da liberalização caetanista, um número importantes de jovens começa a politizar o movimento estudantil e a entrar em organizações clandestinas. O que explica o crescimento do MRPP em Lisboa e do PCP (ML) e do Grito do Povo a Norte. São organizações todas elas posteriores a 1970.

Mas são organizações importantes na época?

Nos trabalhos que tenho feito sobre a extrema-esquerda, na parte das biografias, estou a trabalhar com 3 mil a 3500 biografias. Não são todas de maoistas, retirando outros elementos da extrema-esquerda, trotskistas, guevaristas, etc., que são menos de 500. Restam uma grande maioria que são maoistas. A fragmentação das organizações faz com que a sua força pareça menor. Se os juntássemos a todos, veríamos que o esquerdismo em Portugal tinha uma grande importância. Aliás, veja, Portugal é o único país europeu que elegeu um deputado pró- -albanês.

Nessa segunda geração de organizações maoistas a oposição ao PCP era tão forte como contra o regime, ou mais.

Tinha-se a ideia de que havia dois inimigos: os fascistas e os revisionistas. A maioria das pessoas não tinha passado pelo PCP. Não tinham o molde da cisão pró- -chinesa, esses ou estavam presos ou exilados. As pessoas metem tudo no mesmo saco, mas estas organizações tinha identidades distintas: MRPP, CMLP, o Grito do Povo, PCP (ML). Tinham identidades próprias. E todos eles achavam que o PCP era a face do regime na oposição. O Partido Comunista Português reagiu com extrema violência ao aparecimento do esquerdismo. Os quadros do PCP não compreendiam o que se estava a passar. Achavam que uma provocação quase pidesca. As coisas estavam sempre no limiar da violência física.

Mas o PCP, como fez em outros assuntos, não teve uma dupla táctica: denunciar os esquerdistas e apropriar-se parcialmente de algumas das suas bandeiras?

Sem dúvida. O grande erro dos esquerdistas em relação ao PCP é não perceberem que a direcção de Cunhal era diferente da de outros partidos comunistas. Quando Cunhal sai da cadeia, criticando o desvio anarco-liberal de direita, está em contraciclo com o movimento comunista internacional, em que se assiste ao apogeu das teses de Krutchev da coexistência pacífica. As teses de Cunhal eram mais parecidas com as teses chinesas que com as teses soviéticas. O que não significa que Cunhal, como homem realista que era, não percebesse que tinha de estar do lado dos soviéticos. Mas em todos os momentos em que teve a oportunidade de fazer uma diferença Cunhal foi muito mais esquerdista que todos os dirigentes comunistas europeus. Cunhal tenta criar muito cedo uma organização para a luta armada, que mais tarde veio ser a ARA (Acção Revolucionária Armada). Os textos de Cunhal mostram que ele tinha uma enorme preocupação com os esquerdistas e com o apelo da luta armada. Sabia que havia militantes do PCP que tinham participado na tentativa de golpe de Beja.

Usando a frase imortal do Baptista Bastos, onde é que estava no 25 de Abril?

[Risos] Estava no Porto, a organizar a transferência de um copiógrafo de uma casa segura para umas casa ainda mais segura. Os copiógrafos eram as verdadeiras preciosidades que as organizações tinham. E encontrei-me de manhã com um camarada meu que tinha carro. Ele chegou muito preocupado a dizer que tinha um golpe do Kaúlza. Estacionámos numa mata, para tentar ouvir o que se estava a passar na rádio. Na altura não havia telemóveis e as comunicações eram mais complicadas. Resolvemos, portanto, voltar. Eu só me apercebi da mudança radical quando assisti a uma cena ao princípio da tarde. No porto havia um edifício na Avenida do Aliados que era do Comércio do Porto. E lá fora vemos muita gente em frente do placard informativo. O papel pequeno dizia que em Matosinhos havia uma revolta popular. Eu sabia que esses papéis não podiam durar muito. Apareceu a polícia, em carrinha, mas nesse momento apareceram três ou quatro militares e a polícia fugiu. Lembro-me perfeitamente de ver a carrinha subir a avenida de portas abertas com os polícias cheios de medo.

Qual foi a vossa posição política?

Nós estávamos fragmentados, mas a nossa posição foi a tradicional, que o 25 de Abril não passava de um golpe burguês. E insistirmos na questão da Guerra Colonial. Na altura essa questão não parecia em vias de ser resolvida. Mas depressa a realidade ultrapassou isso, e o que fez a minha organização, como outras, foi manter parte da organização clandestina, e as pessoas que vieram de França construir uma frente legal, o Partido da Unidade Popular e o jornal "Verdade".

Em poucos anos parte das organizações maoistas confluíram no PC(R), restando este, o MRPP e pouco mais. Qual é o seu papel nesta fase?

Eu sou uma espécie de pioneiro da saída. Sou dos primeiros a sair. Toda a gente acha que sou um maoista empedernido porque eu falo destas coisas, não tenho nenhum problema em saber, e admitir que sei muito sobre estas coisas. É uma experiência de comunidade de risco. As pessoas não têm nenhuma consciência disso, porque depois do 25 de Abril o máximo de risco que têm é perder um lugar num partido. Na altura o risco era total, podiam até perder a vida. Eu não concordava com a unificação no PC(R) e tinha uma análise diferente do PCP. Enquanto a maioria tinha a ideia de que eles eram reformistas, eu achava que o PCP queria mesmo tomar o poder. Escrevi dois longos textos sobre isso, sob pseudónimo, assinei como Rui. Afastei-me em Abril de 76, abandonei. Não se pode confundir o realismo do discurso da direcção do Cunhal, que tinha sempre um pé em cada sítio, com o que o PCP verdadeiramente queria. Os textos soviéticos da altura também mostravam que havia uma cisão quanto à situação. Por mais burocratas que fossem, homens como o Suslov não abandonaram a perspectiva revolucionária.

O processo de normalização democrática não leva muitos deles a normalizar também as suas convicções?

Acho que há uma análise mais fina do que essa. Há um conjunto de pessoas que se integram no sistema democrático, mas trazendo-lhe algumas coisas que eles não tinham. Por exemplo, não havia uma verdadeira crítica da União Soviética enquanto poder totalitário.

Em Portugal, quem fez as audiências Sakarov? A ala do PS ligada ao Soares e os antigos maoistas. Em França foi a mesma coisa com os "novos filósofos". Quando analisamos os motivos que levaram uma geração a entrar no maoismo e depois a sair dele vemos uma grande continuidade. Um dos motivos de crítica ao PCP era a rejeição do neo-realismo. Havia uma reivindicação do surrealismo. Era um programa liberal e libertário.

Isso não é uma espécie de justificação a posteriori?

Não. Posso dar-lhe o meu exemplo, tinha um enorme conflito com o Mário Vieira de Carvalho por causa da música que passava na secção cultural da associação de estudantes. Eles só passavam discos do Chant du Monde [editora do PCF].

Qual era a sua playlist?

A gente passava música do Xenakis, música concreta, que assustava muita gente. Estas gerações têm elementos de identidade, apesar da suas mudanças políticas. Veja, a maioria das pessoas desta geração nunca foram reaccionárias em matéria de costumes.

Uma das plataformas que intelectualizaram a passagem para a direita dos maoistas foi o Clube de Esquerda Liberal.

O Clube da Esquerda Liberal é em grande parte uma construção de três pessoas: eu, o João Carlos Espada e o Manuel Villaverde Cabral. Todos com percursos diferentes. Eu conheci o Espada de capuz. Numa reunião em casa da Vieira da Silva em que eu, como pertencia ao sector clandestino, estava de capuz, o que além de ser ridículo criava um enorme problema. Muitas vezes dormíamos no chão das casas em que reuníamos e mesmo nessa altura tinha de usá-lo. Reuni muitas vezes com um capuz enfiado na cabeça. Nessa altura conheci o Espada e o António Costa Pinto, que estavam como dirigentes da UEC (ML). O Manuel Villaverde Cabral veio do PC, aproximou-se da FAP e depois teve uma relação com sectores da extrema-esquerda italiana. É responsável por uma publicação que tem uma grande importância no esquerdismo português, os "Cadernos de Circunstância". Nós os três, que tínhamos vindo do esquerdismo, começamos a ler autores como Karl Popper, com discussões épicas com o Fernando Rosas, de quem sou amigo. O Clube da Esquerda Liberal, em que participou em debates o próprio Mário Soares, teve uma grande importância na introdução de uma visão liberal na política portuguesa.

Esse tipo de conhecimento e percurso é obviamente uma vantagem...

Uma desvantagem é que sei perfeitamente o percurso das pessoas. Tive uma altercação com o Sócrates em que ele me disse: "Uma vez radicais, sempre radicais." Eu respondi-lhe: "Olhe para o seu governo: tem um PC que saiu quase directamente do PC para o executivo, e vários do MRPP."

Com o governo do seu companheiro Passos Coelho e o programa da troika há condições para a radicalização social?

Claro que há. Felizmente, não tem havido mais, porque o PCP e a CGTP têm tomado uma posição moderada, impedindo a radicalização. Impedem que o protesto social ganhe uma faceta violenta. Por isso é que eu digo à gente do meu partido que tenha cuidado com a forma como fala com o PCP.

Há quem diga que nada vai acontecer porque somos um país de brandos costumes.

Isso é uma treta. Portugal nunca teve brandos costumes. O que não teve no século XX foi guerras civis como em Espanha ou na Grécia. Mas teve no século XIX guerras liberais e usaram-se todos os mostruários do catálogo da violência possível. Estes novos radicais serão radicais de dois tipos: anarquistas e populistas da direita política e demagógico, e estes dois tipos entendem-se muito bem. A ideologia presente das acampadas tem uma base antidemocrática e contra os partidos.»


por Nuno Almeida, jornal i online, 02-7-2011

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