Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Marcelino da Mata. ″As memórias foram enterradas vivas e nunca foi feito o funeral″


«Nasci em Bissau em 1971, filha de um militar de operações especiais, sei o que ouvi e conheço os relatos na primeira pessoa dos que passaram por lá. Ninguém me contou. Voltei várias vezes à Guiné depois da independência.
Ninguém me contou também o abandono dos comandos africanos que serviram o exército português na Guiné, assassinados pelo PAIGC, nem o abandono a que durante muitos anos estiveram votados os combatentes portugueses.
Marcelino Mata foi o “herói” útil: negro, fascista, ao serviço de um Império racista que o condecorou como o “negro útil” - as condecorações dele são do Estado Novo - que servia os seus propósitos, como Eusébio serviu para negar o racismo português. Valente? Sem dúvida. Salvou portugueses ? Sem dúvida. Chacinou mulheres e crianças. Sei-o de quem combateu ao lado dele.
“Vasco Lourenço, militar da revolução dos cravos que preside à Associação 25 de abril e cumpriu serviço militar, concorda que Marcelino "foi um grande combatente, corajoso, extraordinariamente destemido".
No entanto, frisa "cometeu crimes de guerra. Era claramente um "Rambo" e torná-lo um herói é ofender todos os antigos combatentes que combateram dentro das regras".
Tem a sua memória no tempo em que cumpriu serviço militar na Guiné (julho de 1969 a junho de 1971) um relato que ouviu Marcelino fazer a um major, sobre uma operação: "entrámos na tabanca, deitamos granadas incendiárias para as palhotas, as pessoas fugiam para o centro da tabanca, matámos todos, homens, mulheres, crianças". "Não aguentei e saí do gabinete", afirma. "Foram ações deste tipo que lhe proporcionaram as condecorações. Não me venham com a teoria de que a guerra tudo se justifica É este o exemplo que queremos dar de um militar?", questiona.”
São estes os nossos “heróis”? Ou romantiza-se aqui um combatente porque serve a narrativa do “não racismo” e dos bravos comandos ? Homenageia-se de forma acrítica um feroz defensor do Império e do salazarismo ? Com presença do Presidente da República de um país democrático?
Desde que ouvi, ninguém me contou, ouvi, um militar narrar como atirou ao “chão de terra vermelha, uma preta ” e a violou ali mesmo, “elas andavam por ali nuas”, e depois a matou, “nem senti nada”, desconfio dos heróis e sei que há muita história da guerra por contar. A preta teria nove ou dez anos. Uma criança.
O pior da guerra ? São os heróis.
(os militares “nossos” e os do PAIGC “deles”).
A memória do meu pai que deixou a juventude nos pântanos da Guiné, que perdeu os camaradas numa emboscada, que ficou com queimaduras em todo o corpo e cicatrizes para sempre na alma, obriga-me a escrever este texto que evitei fazê-lo.
Leiam este trabalho excelente da Valentina Marcelino que nos dá a dupla de dimensão de uma figura controversa, aceite de forma acrítica.»

Helena Ferro de Gouveia

Marcelino da Mata. ″As memórias foram enterradas vivas e nunca foi feito o funeral″

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