Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

quarta-feira, 18 de maio de 2011

53 anos a remar contra a maré da 'carneirada' humana (post publicado aqui no dia 12 de Maio de 2011, e que o Blogger me disponibilizou hoje, em forma de rascunho para republicação)

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Cântico Negro


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces



Estendendo-me os braços, e seguros



De que seria bom que eu os ouvisse



Quando me dizem: "vem por aqui!"



Eu olho-os com olhos lassos,



(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)



E cruzo os braços,



E nunca vou por ali...



A minha glória é esta:



Criar desumanidades!



Não acompanhar ninguém.



— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade



Com que rasguei o ventre à minha mãe



Não, não vou por aí!



Só vou por onde



Me levam meus próprios passos...



Se ao que busco saber nenhum de vós responde



Por que me repetis: "vem por aqui!"?



Prefiro escorregar nos becos lamacentos,



Redemoinhar aos ventos,



Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,



A ir por aí...



Se vim ao mundo, foi



Só para desflorar florestas virgens,



E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!



O mais que faço não vale nada.



Como, pois, sereis vós



Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem



Para eu derrubar os meus obstáculos?...



Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,



E vós amais o que é fácil!



Eu amo o Longe e a Miragem,



Amo os abismos, as torrentes, os desertos...



Ide! Tendes estradas,



Tendes jardins, tendes canteiros,



Tendes pátria, tendes tetos,



E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...



Eu tenho a minha Loucura !



Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,



E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...



Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!



Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;



Mas eu, que nunca principio nem acabo,



Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.



Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,



Ninguém me peça definições!



Ninguém me diga: "vem por aqui"!



A minha vida é um vendaval que se soltou,



É uma onda que se alevantou,



É um átomo a mais que se animou...



Não sei por onde vou,



Não sei para onde vou



Sei que não vou por aí!


José Régio


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"Horta do Zorate" é o blogue pessoal de Alberto João (Catujaleno), cidadão do mundo em autoconstrução desde 1958.