Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

sábado, 2 de maio de 2009

A profecia de Ana Rosa (dos Panteras Rosa)...



"Vital Moreira foi insultado e as palavras de ordem acabaram esquecidas.

Vital Moreira, cabeça de lista do PS às eleições europeias, desce a avenida, no sentido contrário ao da manifestação do Primeiro de Maio. Acabou de cumprimentar os dirigentes da CGTP e dirige-se ao Martim Moniz, acompanhado por Vítor Ramalho e Ana Gomes. Um grupo corre em direcção a ele. “Traidor! Cabrão!”, gritam.

Outros manifestantes aproximam-se, curiosos, apertando o grupo provocador contra a comitiva socialista. Há encontrões. Ana Gomes é empurrada, água é lançada sobre Vital. “Traíste o povo, filho da puta! Avô Cantigas! Traidor! Traidor!” Aperta-se o cerco à volta do candidato, que quer responder aos manifestantes, sempre com um sorriso. Mas Vítor Ramalho puxa-o. “Ele é um provocador, não tinha nada que vir aqui”, comenta Jorge, que vem ao Primeiro de Maio como quem vai a Fátima.

Mas uma jovem vem lançada, a correr, aos gritos. Precipita-se sobre o grupo que cerca Vital Moreira. “Parem! Não façam isso! A democracia é de todos!”, brada Ana Rosa para os manifestantes que já estão em cima do socialista, numa embriaguês de violência. Todos se voltam, subitamente domados pela veemência da rapariga. Ana Rosa consegue chegar a Vital Moreira. “Quero pedir desculpa”.

A pequena multidão aguerrida dissipa-se. Vital Moreira segue o seu caminho e Ana Rosa afasta-se. “É isto que vai abrir os telejornais. Acabámos de perder a manifestação”. A profecia cumpriu-se. As palavras de ordem cederam lugar aos protestos contra a “intolerância”, o “sectarismo” ou a “instigação do ódio”.

Pedro tem 37 anos e a filha de dois às cavalitas. Não falhou quase nenhum Primeiro de Maio. Os mais difíceis foram os dois primeiros, ainda antes de 1974. Vinha com a mãe, que, no saco das fraldas trazia exemplares do jornal “Avante!” e no carrinho de bebé comunicados do MDP. Quando chegavam a um local mais escondido, Graça fingia aconchegar a manta da criança e... lançava ao ar um maço de panfletos.

Ana Rosa tem muitas profissões e em todas elas é precária. Bióloga, bailarina, massagista... Tudo a recibos verdes. Vem de uma família conservadora e rica, mas diz que já passou fome. Porque não se vende. Tem 33 anos, quer ser artista, activista e sexualmente livre. Está a desfilar com os Panteras Rosa, um grupo “contra a lesbigaytransfobia”.

Jorge tem 56 anos, trabalha na mesma empresa há 30, ganha 700 euros por mês e acha “importante” continuar a vir ao Primeiro de Maio. “É uma espécie de peregrinação a Fátima”, explica.

Maria dos Anjos Gorena é Madre Superiora das Irmãs Oblatas. Desfila com um guarda-chuva vermelho, símbolo das prostitutas. Ela e outra freira, juntamente com sete prostitutas, desfilam também integradas nos Panteras Rosa. “Não conhecia este grupo. Mas são pessoas fabulosas, estes gays”, diz a Madre. “O importante é trabalharmos em conjunto”. Algo pouco comum na Igreja Católica... “Esqueça a Igreja Católica. Jesus se estivesse aqui, estaria a distribuir preservativos às prostitutas”.

Bolas contra Sócrates

A manifestação vai a subir a Avenida Almirante Reis, como um rio vagaroso à superfície, mas de remoinhos profundos, que desagua na Alameda Afonso Henriques.

Um homem e uma mulher, da CGTP, estão em cima de um caixote de madeira a ditar as palavras de ordem, com um megafone. Os vários grupos profissionais vão obedecendo, à passagem. “Trabalho é um direito. Sem ele nada feito”. Gritam os slogans velhos: “CGTP. Unidade sindical”. E os os novos: “Sem pesca não há pão. Sesimbra tem razão”.

Camionetas forradas a cartazes tocam canções que não passam na rádio. De Zeca Afonso: “Ooouvem-se já os clamooores...” De Carlos Puebla: “E tu querida preseeencia, comandante Che Guevaaara”.

Um cartaz: “Pela nacionalização da banca”. Outro, empunhado por um grupo de raparigas: “Somos mal empregadas”. Outro ainda: “Há água e cerveja”. E aquele ali, com as caras de José Sócrates e Durão Barroso e buracos nas respectivas bocas abertas: “Eles que engulam a crise!” Activistas oferecem bolas de trapos, para atirar aos cartazes.

Um grupo segura uma faixa da Frente anti-racista. “A luta continua. Governo para a rua”, grita um rapaz de 'dreadlocks’ rasta, calças a meio da nádega e t-shirt que diz “Angola”.

Da secção do PS de Almirante Reis, o sr. Joaquim Domingos, 80 anos, porteiro-sem-salário da sede desde 1974, sorri à janela.

Um pouco abaixo, Jerónimo de Sousa recebe beijos e abraços. “Ele era tão bonito quando era mais novo”, diz uma mulher enlevada.

Os dois “CGTPs” do megafone fazem o relato do encontro, em cima do caixote: “...e continuam a passar os representantes da freguesias da margem Sul, neste grande Primeiro de Maio...”

As sete prostitutas erguem os cartazes: “Prostituição: não ao preconceito. Sim à pessoa!” É a primeira vez que desfilam. Para a sua classe, é um momento histórico. “Deviam usar máscaras”, critica a Madre Superiora. “É preciso introduzir alguma criatividade nestas manifestações”.

“Com este governo andamos para trás”, gritam os precários do movimento Mayday. E marcham às arrecuas, depois correm para a frente.

Ana Rosa, loura, calças rasgadas e mochila, está a gritar: “País precário. Sai do Armário”. Muitos dos seus amigos já foram para o estrangeiro. Ela ficou, para ser activista. “Isso é o mais importante. Por ter actividade política, já andam espiões atrás de mim. Sim, porque a PIDE ainda existe.”

Pedro, que há 36 anos trazia panfletos clandestinos nas fraldas, tem agora quatro salários em atraso. “Vou-me despedir na segunda-feira”, revela em primeira mão. Ainda não comunicou à empresa. Porque continua a vir ao 1º de Maio? Porque “olhando para a História, vemos que não há direitos que tenham sido conquistadas sem luta. Pelo menos desde a Revolução Francesa.” E aqui? A luta pode tornar-se violenta? “Para já, acho que não, mas se as coisas piorarem...”

in Público online, 02-5-2009




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Fotos, título do post e sublinhados , escolhidos pelo editor do blog.

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