Destas mãos que falam, saem gritos d'alma, gemidos de dor, às vezes, letras com amor, pedaços da vida, por vezes sofrida, d'um quase iletrado escritor. Saem inquietações, também provocações, com sabor, a laranjas ou limões. Destas mãos que falam, saem letras perdidas, revoltas não contidas, contra opressões, das nossas vidas! (Alberto João)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

António Almeida: "Fazer o 9.º ano aos 51 anos foi uma vingança"...


- António Almeida -


Tinha 15 anos quando abandonou a escola. A sensação de que era a única pessoa do mundo com deficiência travou-lhe o gosto pelos estudos. As Novas Oportunidades mudaram agora a vida de António Almeida. Tem 51 anos.

Ele é um dos 340 adultos do Porto inscritos no processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), programa integrado nas Novas Oportunidades, que permite reconhecer o valor de cidadãos com deficiências e incapacidades, concedendo-lhes o 9º, o 12º ano ou mesmo o acesso à Universidade. Até hoje, já passaram pelo Centro 1255 cidadãos com problemas ao nível da visão, audição, fala, das funções mentais-intelectuais, da doença mental, das funções neuromuscoesqueléticas e relacionadas com o movimento.

"Confesso que não encarava o Centro de Novas Oportunidades da mesma forma que hoje", começa por dizer António, funcionário há 20 anos da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental do Porto, sediada no Bairro do Cerco. E não a encarava da mesma maneira pelo mesmo motivo com que tantos olham a oportunidade com desconfiança: "Achava que era injusto para os jovens, que passam tanto tempo em formação, quando nós, em pouco tempo, conseguimos adquirir os mesmos diplomas".

Depois, começou a olhar para os colegas, muitos só com a 4ª classe, e "a tirar-lhes o chapéu", a perceber que se havia alguma coisa injusta, talvez fosse o facto de a maioria daquelas pessoas não ter acesso ao diploma quando, afinal, tem, sem o saber, o conhecimento que dita o seu merecimento. Dá um exemplo: "As pessoas não sabem a matemática que sabem. Não têm noção, porque não aprenderam a teoria. Mas sabem aplicá-la, sabem fazer tudo, médias, modas, medianas, percentagens. Com os jovens acontece o contrário: sabem a teoria, mas não sabem ainda de que forma poderão aplicá-la ao longo da vida".

Ali, os alunos não aprendem; são desafiados a mostrar o que sabem, a executar um portfólio "sem modéstias". É, no fundo, a consciencialização do seu saber.

António viu ali, nas Novas Oportunidades, uma oportunidade de ajustar contas com a vida. "Foi uma vingançazinha", diz, a rir. Desistiu do liceu - do antigo D. Manuel II, actual Rodrigues de Freitas - por causa da "falta de acessos que imperava nos estabelecimentos de ensino". Ele, que na altura ainda andava de canadianas e aparelhos vários, fruto de uma meningite para a qual não tinha sido vacinado, e que culminou numa poliomielite, sentia-se discriminado, cansado. "Entrar na escola, subir as escadas até à sala era um desgaste terrível, que depois se reflectia na ausência de aproveitamento escolar", recorda.

Chegou a pensar que o seu problema não seria motor, mas intelectual, porque não via rendimento. "Lembro-me de perguntar à minha mãe se eu era a única pessoa com deficiência, porque não via ninguém como eu no liceu nem fora dele. E não entendia porque razão ela me obrigava a estudar, a participar, a sair à rua. Dizia-lhe: "Mas não há ninguém como eu". E ela, com a sapiência das mães, respondia-lhe: "Tu nunca vais depender de ninguém".

Por isso, quando os formadores lhe perguntaram porque razão queria completar o 9.º ano (só lhe faltavam duas cadeiras) ele, que tem vida profissional activa, que é casado e pai de uma menina de 15 anos, disse apenas: "Já que fui injustamente privado no passado de estudar, quero agora trabalhar para a minha promoção pessoal". E é isso que, "se tiver forças", vai fazer: avançar para o 12.º ano e, quem sabe, para a universidade.

A Agência Nacional para a Qualificação acaba de editar um manual para o RVCC, que irá introduzir novas dinâmicas nas aulas, permitindo aos orientadores reajustar as estratégias.

in JN online, 15-6-2009



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"Horta do Zorate" é um blogue pessoal, editado por Alberto João (Catujaleno), cidadão do mundo, fazedor desencostado, em autoconstrução desde 1958.